Respondendo a Aldo Costa “Para você, que pontos nós junguianos ‘ainda não aprendemos a herdar com serenidade’”

(22 de agosto de 2012)

Há algum tempo, Aldo Costa um leitor que colabora bastante com nosso blog enviou um comentário com uma pergunta,

Prezado Fabrício,

Realmente o livro do Roberto Gambini é excelente (considero leitura obrigatória). Porém, ainda hoje me pego analisando as possibilidades possíveis quando ele diz que: “Nós junguianos temos um complexo de herança – ainda não aprendemos a herdar com serenidade. Alarmamo-nos com a idéia de que a herança possa ocultar um problema paterno, ou que ameace nossa liberdade criativa.”
Qual a sua opinião sobre o trecho citado? Para você, que pontos nós junguianos “ainda não aprendemos a herdar com serenidade”.

Acredito que para começarmos a pensar uma possível resposta devemos voltar ao texto do Gambini. Em seu livro, ele aponta para um complexo de inferioridade junguiano frente a psicanálise, segundo ele,

Um dos problemas a essa questão é o famoso complexo de inferioridade dos junguianos perante os freudianos. (…)

Surgiu então uma certa tendência entre os junguianos, de se fortalecerem através da adoção de procedimentos freudianos, como se isso os legitimasse num terreno de insegurança. O analista junguiano que aprende o uso da técnica psicanalítica, com seu manejo típico da transferência e da resistência, que faz interpretações nessa campo da maneira como é concebida pela Psicanálise, que pensa o momento analítico como repetição do vivido, que concebe o material reprimido como sendo aquilo que uma vez esteve na consciência, que entende os sonhos como exclusiva manifestação de desejos infantis, esse analista junguiano está na verdade pensando  e operando como um psicanalista. Alguns usam divã. De um lado se diz que o sincretismo é positivamente uma aproximação de linhas então divergentes. Digo que não. A Psicanálise até hoje não lucrou rigorosamente nada com a aproximação que lhe fez a Psicologia Analítica, talvez tenha antes se comprazido com o reconhecimento tardio dos descendentes do principal desertor do circulo vienense original. O resultado dessa tendência é a crescente descaracterização da Análise Junguiana, à medida que seus praticantes vão procurar na Psicanálise elementos que supostamente lhes falem. Grifo a palavra supostamente. (GAMBINI, p. 42-44).

Acredito que esse complexo de inferioridade defendido por Gambini não se caracteriza apenas pela “inferioridade frente a psicanálise”, outra forma dessa inferioridade é o que Andrew Samuels, em seu texto, “Sobreviverão os Pós-junguianos”, chamou de “fundamentalismo junguiano” é uma forma compensada deste complexo. Segundo Samuels,

Como todos os fundamentalismos, o fundamentalismo junguiano deseja controlar quem ou o que faz parte e/ou não faz. Daí tende a ser cruel e estigmatizante. Ouve-se, às vezes, numa avaliação das circunstâncias de treinamento: “Ele (ou ela) não tem mente psicológica,” dizem. Ou a tipologia é utilizada para estabelecer situações sociais, culturais ou interpessoais complexas, de um modo inteiramente improdutivo e oracular. Mulheres intelectuais podem ser sumariamente executadas. O fundamentalismo junguiano nega seu papel no mercado de trabalho – tenta convencer-nos de que ele apenas é, que não tem um projeto persuasivo, procurando influência, como o resto de nós. Há uma tentativa de negar seu aspecto comercial, inclusive o financeiro. O fundamentalismo junguiano enfatiza a pessoa de Jung e suas palavras proféticas, que, às vezes, chegam até mesmo a alegar serem inspiradas pelo divino. Mas o que enfatiza, particularmente, é como vivia Jung. Às vezes isso é chamado de “o caminho junguiano”. Tenho horror à essa noção de haver “um” ou “o” caminho junguiano, mas o fundamentalismo junguiano joga com isso.

(…)

Deixem-me prosseguir, fazendo uma crítica semelhante à tendência jungiana atual em direção à fusão com a psicanálise. Quero deixar bem claro que não sou contra o uso da psicanálise pelos junguianos, como é o caso da escola desenvolvimentista. Como foi que apareceu no mundo junguiano, essa tendência atual de fundir-se com a psicanálise? Em primeiro lugar, acho que, muitas vezes, baseou-se em alguma coisa excessivamente pessoal, visto que vários junguianos que fizeram análise pelas escolas jungianas clássica ou desenvolvimentista não ficaram satisfeitos com suas experiências ali. Daí a fusão jungiana com a psicanálise pode estar baseada, em minha opinião, na raiva e numa idealização da psicanálise como sendo, de alguma forma, clinicamente melhor, como possuindo requintada e superior habilidade clínica, quando comparada com a nossa.

Isto leva os junguianos a fecharem os olhos às enormes contribuições clínicas que têm sido feitas pelos próprios junguianos. Não estou fazendo a queixa costumeira (referida acima) de que ninguém reconhece que “nós” pensamos nisto primeiro. Minha queixa aqui é a de que os próprios junguianos da escola psicanalítica não atentam para certas idéias que são nossas por direito de nascença e por herança. (SAMUELS, S/D)

Entretanto, não basta pensar apenas como um complexo de inferioridade, relacionado aos desenvolvimentos e reconhecimentos alcançados pela psicanálise. Não podemos perder de vista que há, também, uma certa relação estabelecida com  a figura de Jung, que em alguns casos beira a mitificação de Jung por um lado, por outro, um distanciamento excessivo das concepções junguianas. Samuels foi extremamente feliz quando propôs o termo pós-junguianos, segundo ele “Quero expressar com isso uma conexão com Jung e, ao mesmo tempo, distância crítica de Jung” (op.cit). Samuels nos fala da necessidade de um luto adequado de Jung.

Se não houvéssemos feito luto adequado por Jung, estaríamos deprimidos. E realmente acho que exista uma depressão no mundo junguiano de hoje que torna difícil valorizar-nos suficientemente para abrirmo-nos a outros psicoterapeutas e intelectuais em geral. O que significaria estar de luto por Jung? Significaria pôr-se além de uma divisão idealização-depreciação em relação a ele, uma divisão que sinto contaminar algo de nossos pensamentos e, certamente, de nossas práticas.

Acredito que estamos dando passos importantes para a “elaboração” desse luto. Mas, a julgar pelo que vemos através das redes sociais temos ainda temos um belo percurso pela frente. Vejo muitos ainda com uma visão extremamente idealizada de Jung, mas, que pouco se dedicam a compreender seus textos assim como os textos dos pós-junguianos. Na elaboração desse luto acredito que a psicologia arquetípica tenha uma contribuição fundamental, pois, ela nasce como uma leitura crítica dos textos de Jung. Acredito que muitos junguianos ainda careçam dessa critica aos textos junguianos, especialmente, os que seriam classificados como “clássicos”. 

Então, Aldo, peço desculpas por essa longa volta… acredito que posso voltar a sua pergunta inicial, o que acho do texto de Gambini? Sim, concordo com o texto.

O que não aprendemos a lidar com serenidade?

Faço das palavras de Gambini e de Samuels as minhas, acho que devemos conscientizar esse o complexo de inferioridade que se traduz em diversos aspectos, como a dependência da figura do pai, muitas vezes traduzidas como o “Mestre Jung”, como se não houvesse produção após Jung! Nossa, o universo junguiano ou pós-junguiano é muito rico! E, muitas vezes, vemos apenas uma pontinha dele… Estudar os textos de Jung é fundamental, mas, não podemos nos tornar reféns de sua obra. Compreendo que fazer jus a Jung é ir para além de Jung. É se abrir ao dialogo, mas, sem ter um “pires na mão” pedindo reconhecimento. É compreender que a psicologia junguiana é plural. E nisso reside nossa força, nossa identidade. Me recordo da frase do belo texto de Clarice Lispector “Perdoando Deus”, que diz “Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrario(…)”  Acho muitas vezes agimos assim, nem ao menos conhecemos todas as possibilidades das escolas junguianas, já nos voltamos a outras abordagens.  Talvez, um desafio será aprendermos a lidar com serenidade com a psicologia junguiana em sua totalidade e com toda sua possibilidade.

Aldo, desculpe a demora para responder suas perguntas. Fico muito feliz com suas colaborações! Abraços,

Referências Bibliográficas

GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

SAMUELS, A. Sobreviverão os Pós-Junguianos? Disponível em:
http://www.rubedo.psc.br/Artigos/sobrevi.htm   Acesso em:  22 agosto. 2012, 15 p.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

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