Religião, Espiritualidade e Psicoterapia: uma reflexão junguiana

A experiência religiosa é um aspecto fundamental de nossa vida social e pessoal. A partir dela nos orientamos pela crença, descrença e indiferença, nos orientando tanto em relação a grupos sociais quanto em relação à experiências simbólicas oriundas da tradição, nos orientando em nossos processos de organização psiquico e psicossocial.

Apesar de ter grande importância na vida das pessoas, muitos profissionais e mesmos abordagens dentro da psicologia tendem a ver a religiosidade/devoção das pessoas com muitas (e excessivas) reservas. Por vezes, estudantes de psicologia já me questionaram sobre eu falar abertamente a relação entre a religião/ religiosidade e psicologia, pois na faculdade o “professor falou que não podia falar de religião com o paciente” ou que “falar de religião no consultório é anti-ético”.

De fato, essas falas se devem a uma interpretação rígida do artigo 2, alinea b do Código de Ética do Profissional da Psicologia e de uma visão equivocada ou mesmo o desconhecimento acerca do fenômeno religioso. Vejamos o que diz o

Art. 2. Ao psicólogo é vedado

b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas,religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;

O artigo 2 alinea b do código de ética não é “contrario a religião” como alguns fazem parecer, este é um artigo que versa em defesa da liberdade de opinião, crenças e orientação sexual, da individualidade, autodeterminação do paciente e do respeito aos diferentes modos ser no mundo. Deste modo, o código de ética indica que o psicólogo precisa compreender e respeitar as crenças do paciente sem induzir ou impor as próprias crenças pessoais ao processo terapeutico do paciente. Isso não significa deva “ignorar” o sistema de crenças seja religioso, político, ideológico mas compreende-lo como parte da totalidade do individuo.

O que muitas vezes observamos é o erro ou preconceito acerca do fenômeno religioso baseado em um julgamento moral, ideológico ou teórico sobre a vivência religiosa. Quando, na verdade, deveríamos entender a experiência religiosa do paciente. Para especificar gosto muito do texto de Antônio Ávila, que diz que utiliza

“o termo ‘experiência religiosa’ para designar a experiência imediata e intuitiva de algo ou de alguém que me transcende, que pode ser uma experiência meramente pontual ou uma vivência de fundo, que aparece de forma mais ou menos estável ao longo da vida do individuo. essa vivência intima e pessoal pode cristalizar-se numa vivência religiosa plena ou não. Pode estruturar-se racionalmente, gerando uma determinada cosmovisão, um corpo de crenças estável, ou deixar-se influenciar, de forma sincrética , pelas distintas ofertas fornecidas pelo ambiente e pela cultura. (AVILA, 2007, p.98)

A vivência religiosa que pode ser funcional, organizadora ou disfuncional causando adoecimento, contudo, é necessário compreender o ponto de vista do paciente, suas experiências e os fundamentos que constituem a crença religiosa para entender sua função para o indivíduo.

A dificuldade da compreensão da dimensão religiosa trazida pelo paciente(e consequentemente do trabalho ético) se dá pelo desconhecimento dos processos simbólicos saudáveis e transformadores que podem estar associados às narrativas religiosas; desconhecimento da história, da doutrina e dos valores de cada religião ou denominação religiosa; desconhecimento acerca fenômenos presentes na religiões como glossolalia (falar em linguas), êxtase, transe, visões e alterações na percepção/sensação como fenômenos que fazem parte do processo religioso e que não devem ser equiparados a fenômenos psicopatológicos.

A pouca ou nenhuma atenção dada pelas faculdades de psicologia aos processos estudados pela psicologia da religião (àrea/matéria que não existe no Brasil) favorecem não só ao preconceito, mas a erros na conduta por profissionais que desconhecem formas de abordar a experiência religiosa dos pacientes – misturando a própria experiência religiosa com a experiência do paciente.

Religiosidade/Espiritualidade na Clínica

Em quais momentos a religiosidade/espiritualidade entra na clínica? Primeiro lugar devemos considerar que existem diferentes atitudes em relação a religiosidade/espiritualidade (R/E), se manifestam como

1 – Pessoas religiosas cuja vivência religiosa é tão significante quanto determinante no seu modo de ser. Assim, sua devoção está sempre presente no discurso, no modo como fala, no modo como se comporta e ouve. Com essas pessoas a atenção aos processos religiosos é importante para ela se sentir ouvida e compreendida em sua fé.

2 – Pessoas religiosas cuja vivência é significante, porém não determinante em sua vida, sendo flexivel e aberta a novas possibilidades independente de sua religiosidade. São pessoas que a R/E quase nunca será questão e dificilmente será abordada na psicoterapia.

3 – Pessoas afastadas de sua matriz religiosa ou em crise de fé, cuja significancia e determinação da experiência religiosa é incerta, podendo ser mais ou menos flexíveis a novas possibilidades, nesse terreno pantanoso devemos ir com cautela, pois é comum que diante de de novas perspectivas diante da vida, podem reagir com medo e fechamento (levando um retorno defensivo a sua matriz religiosa), por isso, devemos considerar cuidadosamente esses relatos afastamentos e crises de fé.

4 – As pessoas que se afirmam a-religiosas ou ateístas nesse caso, no máximo verificaríamos a história religiosa familiar de sua origem religiosa(até para compreender seu sistema familiar). A linguegem simbólica seria independente dos processos da R/E.

Levando em consideração esses fatores, podemos pensar a R/E em três situações: anamnese, linguagem e encaminhamentos/parcerias.

Anamnese: Acho muito importante verificar se o paciente pratica ou tem alguma referência R/E no momento: como é envolvimento pessoal (compreendendo suas crenças) e social (atribuições, cargos, frequência) e de se deve ser dada mais atenção ao esse aspecto da vida do psciente, assim como qual era a referência religiosa de sua familia durante sua infância. Compreender a origem religiosa do sistema familiar pode nos dar dimensão do desenvolvimento da culpabilidade, preconceitos, temores, fantasias – isso é importante para compreender aspectos históricos e associado aos complexos de pacientes não-religosos quanto verificar (posteriormente) se há conexão com os valores e crenças que o paciente professa no presente e se há signficancia ser abordada no tratamento.

Na area médica, tem crescido o uso de instrumentos designados como “anamnese espirtitual” que são questionários que permintem compreender a crença, a relevancia para o individuo e como ele compreende o papel da R/E no processo enfrentamento da doença.

Linguagem: Quando verificamos que a religião é um tema significante e recorrente na terapia do paciente, podemos ajustar nossa linguagem tanto de modo a não agredir o paciente, assim como utilizar metaforas/alegorias e figuras de linguagem aos símbolos que fazem parte da universo do paciente R/E.

Isso significa ler, conviver e aprender com pessoas das diferentes religiões que estão em nosso dia a dia. É importante ter noção de narrativa bíblica (nem me refiro a teologia, digo do texto), para atender um evangélico, do mesmo modo ao atender um candomblecista é conhecer o mínimo das caracteristicas dos orixás (de cabeça e adjunto), sobre as entidades da umbanda para compreender sua importância para o umbandista.

Encaminhamentos/Parcerias: Em algumas situações é importante conhecer líderes religiosos que possam auxiliar a pessoa do paciente em suas questões de fé, ou seja, podemos indicar ou encaminhar de acordo com a matriz religiosa do paciente a buscar uma pessoa de referência. Conhecer padres, pastores(as), reverendos(as), pais/mães de santo ajudam nesse encaminhamentos que podem auxiliar o paciente suas questões propriamente religiosas.

Ter contatos, conhecer líderes religiosos(mesmo os dos pacientes), ajudam a podermos pensar em referência religiosas auxiliem caso um paciente precise(dentro de sua própria concepção e matriz religiosa). É importante conhecer lideres que possam compreender o trabalho do psicólogo e trabalhar em parceria, mas reconheço infelizmente poucos conseguem essa visão. Compreendendo a saúde em seu aspecto amplo como bem estar fisico, mental, social e espiritual, devereríamos compreender que bons líderes religiosos são parceiros – assim como fazemos com outros profissionais da saúde.

A Religião e Espiritualidade na Psicologia Analítica

Jung sempre foi enfático ao afirmar que não defendia uma ou outra confissão religiosa, mas compreendia a R/E como atitudes do individuo frente ao mistério. O psicólogo não precisa defender ou validar um ponto de vista religioso ou sobrenatural para reconhecer seu valor psiquico para o individuo. Jung dizia

Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo. (JUNG, 1989, p. 326)

Fica evidente que Jung reconhecia na R/E possibilidades que favorecem o desenvolvimento psiquico, que foram se constituindo ao longo da história humana. Com isso, devemos perceber que as vivência religiosa pode oferecer rotinas estrututadas (rituais pessoais saudáveis), construção de uma visão de mundo pessoal (mitologia/simbolismo pessoal), consciência ampliada e autopercepção (práticas meditativas e contemplativas), dentre outras formas possibilitam a elaboração de processos psíquicos internos e externos.

Nessa perspectiva Jung considerava as religiões e a psicoterapia como pares no processo de cura ou elaboração do sofrimento da alma humana. Isso é muito caro à psicologa analítica pois integra a psicoterapia ao universo simbólico do paciente. Isso não é uma questão do profissional ter ou não religião, mas de entender a história, as práticas e as doutrinas religiosas – como dito acima, isso vem com estudo, experiência e disponibilidade para compreender a multiplicidade vivências religiosas. E ter clareza que a clínica não tem a ver com a “nossa” experiência pessoal, mas sempre com a experiência do paciente.

Começamos citando o Código de Ética da Psicologia, contudo, gostaria de concluir com uma citação muito importante de Jung que tantos anos antes repercutia a mesma preocupação expressa veio a ser expressa no artigo 20 aliena b do Código Ética. Ele diz:

(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente” (Jung, 2000, p.154)

Violentamos nosso paciente quando impomos nossas crenças, muitas vezes também o violentamos quando, mesmo por desconhecimento, negamos/rejeitamos suas crenças como parte essencial de sua vida e que podem contribuir para sua saúde. Compreender e respeitar é um princípio fundamental para o exercício profissional – incluindo o lidar com as crenças religiosas dos pacientes.

Referência Bilbiográficas

ÁVILA, Antonio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

JUNG,C.G. Civilização em Transição , Petrópolis,: Vozes 2000

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/

Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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