Psicologia da Religião–uma Leitura Clínica e Junguiana

Este texto foi escrito como base para a Palestra Realizada na Semana Acadêmica da UNES – Faculdade do Espirito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, ES. em 27 outubro 2011[1]

Acredito que para muitos falar em “Psicologia da Religião” soa como uma novidade, mesmo para os alunos em períodos finais de graduação em psicologia. Quando falamos em psicologia da religião, a principio nos remetemos a concepção de estudo da religião a partir da psicologia. Esta concepção, nos anos 60, foi substituída por uma concepção que visava uma perspectiva de “psicologia e religião”, isto é, priorizando o dialogo com a religião. Assim, falar em “psicologia da religião” implica não só no estudo, mas, no dialogo com a religião.

Apesar deste tema ser relativamente desconhecido (e estranho a grade curricular das faculdades), mas, a “psicologia da religião” não é “nova”, pois, os estudos de psicologia direcionados ao fenômeno religioso começam no final do século XIX, a primeira obra destinada ao estudar a Religião a partir da Psicologia foi publicada por Edwin Starbuck, em 1899, com o titulo “A psicologia da Religião – um estudo empírico do desenvolvimento da experiência religiosa”, mas, a obra que efetivamente marcou o nascimento da Psicologia Religião, foi a do professor de Starbuck, William James, que em 1902 publicou “As variedades da Experiência Religiosa”. A aplicação da psicologia no estudo do fenômeno religioso nasce com a própria psicologia, e vários importantes teóricos como Jung, Freud, Piaget, Fromm, Erikson, Maslow dentre outros dedicaram inúmeras páginas para falar acerca desse fenômeno.

Apesar da Psicologia da Religião possuir um rico histórico e ter sido objeto de preocupação de vários dos ícones da psicologia, no Brasil, a psicologia da religião não se constitui uma área autônoma, pois, está dividida entre estudos da psicologia social, psicologia clínica e da ciências da religião.

Não devemos perder de vista que, ao falarmos de estudar a “religião”, não estamos reduzindo a mesma a um fenômeno psicológico. Na verdade devemos ter clareza que quando nos referimos a religião estamos falando de um fenômeno complexo, que comporta várias perspectivas de compreensão, desde o estudo próprio da religião, a teologia, história da religião, antropologia da religião, sociologia da religião, filosofia da religião. Nenhuma perspectiva possui a “verdade” acerca da religião, todas se esforçam para, na medida do possível, serem o mais fiéis na compreensão do fenômeno religioso. Devemos assim, especificar mais o que entendemos por religião, isto é, o que seria a religião segundo uma concepção psicológica? Segundo Velasco,

A religião é um fato humano complexo e específico: um conjunto de sistemas de crenças, de praticas, de símbolos, de estruturas sociais por meio dos quais o homem, nas diferentes épocas e culturas, vive uma relação com um mundo específico: o mundo do sagrado. Esse fato caracteriza-se por sua complexidade – nele põem em jogo todos níveis da consciência humana- e pela intervenção de uma intenção específica de referência a uma realidade superior, invisível, transcendente, misteriosa, da qual se fez depender o sentido ultimo da vida. (VELASCO apud ÁVILA, 2007. p. 14).

Aqui se coloca um ponto fundamental: a religião é um fato humano. Isto é, para compreender esta afirmação devemos ter clareza que falamos do homem frente ao sagrado. Assim, “suas motivações, seus desejos, suas experiências, suas atitudes, etc., expressos em seus comportamentos” (ÁVILA, 2007, p.15). Devemos frisar que ao falarmos do homem frente ao sagrado englobamos tanto as atitudes positivas, como o teísmo, quanto as negativas, como o ateísmo. Por outro lado, a religião se constitui, “uma busca de sentido em relação ao sagrado”(PARGAMENT apud ÁVILA, 2007, p.15) Deste modo, a psicologia da religião não tem por objetivo estudar “Deus” ou o “divino” ou “qualquer realidade transcendental”, isto está fora do escopo da psicologia.

Caberia mais uma observação, alguns autores preferem utilizar o termo espiritualidade a religião, pois, espiritualidade está mais relacionado a aspectos pessoais e individuais, ao passo que religião é muito amplo, abrangendo tanto aspectos pessoais quanto sociais/institucionais. Ainda sobre definições, a religiosidade pode ser compreendida como “todo comportamento, atitude, crença, que tenha um caráter religioso, independente de sua origem (a experiência pessoal, aprendizagem, tradição etc.) e de toda avaliação (maturidade, sanidade, profundidade, intensidade, etc.)” (AVILA, 2007, p. 69).

A psicologia da religião não possui uma unidade no estudo do fenômeno religioso, dessa forma, existem várias possibilidades de se aborda-la, seja pelo aspecto individual ou coletivo, seja pelas teorias psicológicas.

Em nosso caso específico, eu compreendo e estudo a religião a partir de duas referências, a primeira é a psicologia analítica, que é uma das abordagens clássicas do estudo da psicologia da religião, e a segunda é clínica, uma vez que sou psicólogo clínico.

Na abordagem junguiana, o estudo da religião ocupa um lugar de destaque, seja por facilitar a compreensão teórica acerca da teoria dos arquétipos, ou por sua implicação na prática da clínica. O próprio Jung valorizava bastante a compreensão da função da religião na vivência do individuo. Basta lembrarmos que a família do Jung foi uma fonte bem rica da diversidade de manifestações religiosas. Seu pai, seu avô e sete de seus tios eram pastores da igreja reformada. Parte de sua família se envolveu no estudo do espiritismo. Em suas Memórias, Jung relata que cedo rompeu com a religião institucional, relata também que via e sentia pena do pai que era angustiado em suas dúvidas interiores.

Suas experiências pessoais, familiares e profissionais o levaram a um estudo dedicado do fenômeno religioso. Jung percebeu que as idéias religiosas, em sua essência, eram similares e se manifestavam de modo semelhante por diferentes culturas, fato que o levou a considera-las como expressão da psique coletiva, isto é, do inconsciente coletivo. Desde modo, a religião, para Jung, possuiria uma função estruturante importante na psique – tanto coletiva, isto é, dos povos, quanto na psique individual. As narrativas, os símbolos religiosos, os sistemas de crenças seriam importantes por auxiliar ao ego a suportar a tensão tanto do inconsciente quanto do mundo exterior. Para Jung todas as religiões eram igualmente válidas. No âmbito da psicologia, não é relevante pensar se é verdadeira ou não qualquer concepção apresentada pelo cliente,

Quando a Psicologia se refere, p. ex., a concepção virginal, só se ocupa da existência de tal idéia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer sentido. A idéia é verdadeira, na medida em que existe. (JUNG, 1999, p.8)

De forma geral, quando observamos os escritos de Jung, notamos que seus trabalhos ou seus estudos não se concentravam num estudo acadêmico da religião, mas, sim num estudo direcionado a prática da psicoterapia. Ou seja, Jung percebia que a relação do individuo com a religião, poderia contribuir para compreender seu adoecimento psíquico ou ser um meio útil para a resolução do conflito no qual o individuo se encontrava.

O que são as religiões? São sistemas psicoterapêuticos. E o que fazemos nós, psicoterapeutas? Tentamos curar o sofrimento da mente humana, do espírito humano, da psique, assim como as religiões se ocupam dos mesmos problemas. Assim, Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos de psicoterapia. Não estou fazendo jogo de palavras ao chamar a religião de sistema psicoterapêutico. É o sistema mais elaborado, por trás do qual se esconde uma grande verdade prática. (JUNG, 2000a, p. 167-8)

Jung compreendia que todos os sistemas religiosos, ao longo da história humana buscavam lidar os males da alma. Assim, a religião é compreendida como um meio eficaz que a desenvolvida pela humanidade para lidar com os males que afetavam o corpo e a alma. A compreensão saúde pela religiosidade antiga contemplava o homem inteiro. Não é atoa que em sua origem, nos mais diversos idiomas, os termos saúde e salvação compartilham o mesma origem

Saúde e salvação são termos co-originários, ou melhor, nasceram de um mesmo conceito e partilharam por muito tempo a mesma sorte e um mesmo significado geral, que acabou cindindo-se bem mais tarde. Trata-se do significado sânscrito do svastha(= bem-estar, plenitude), que depois assumiu a forma do nórdico heill e, mais recentemente, Heil, whole, hall nas línguas anglo-saxônicas, que indicam “integridade” e “plenitude”. A mesma coisa acontece com o termo sotería: na língua grega, segundo a qual justamente Asclépio é considerado sotér: aquele que cura e que é ao mesmo tempo “salvador”. Na língua latina é emblemático o significado de salus, termo capaz de incorporar, mesmo em época recente, tanto o significado de “saúde” como de “salvação”. É preciso, porém, lembrar que também em outras línguas acontece a mesma combinação. (TERRIN,1998 , p154)

Compreender esses aspectos históricos e culturais que aproximam a psicologia, em especial a clinica, da função psíquica das religiões nos possibilita compreender a possibilidade de seu uso correlacionado com a prática da psicoterapia. Devo esclarecer, que quando falo em “uso correlacionado” não me refiro a misturar psicologia e religião, mas, compreender o contexto simbólico do cliente, compreender suas metáforas e os elementos de suas vivências que são fundamentais para aquele individuo.

Uma das maiores dificuldades no dialogo entre a psicologia e a religião é o preparo do profissional, isto é, o despreparo. Andreia Coliath produziu uma interessante dissertação acerca da “Escolha do Terapeuta associada à denominação religiosa”, nesse trabalho, Coliath, a partir de categorias de Wulff, faz uma levantamento interessante das atitudes comuns dos psicólogos acerca da relação com o fenômeno religioso. Ela cita quatro tendências gerais de posicionamento dos psicólogos

1 – Negação literal: Esta atitude assume que a linguagem religiosa deve ser entendida de forma literal, porém rejeita todo o conteúdo nela apresentado. Os psicólogos nesta posição desconsideram a singularidade das experiências religiosas, o milagroso, e hipervalorizam os princípios formais do conhecimento. Os profissionais que adotam esta atitude tendem a ignorar a religiosidade do sujeito ou reduzem a religião a um conjunto de afirmações irracionais a serem extirpadas ou apropriadas pelas ciências para serem explicadas racionalmente. O paciente nesta posição encontra-se fechado à linguagem simbólica.

2 – Afirmação literal: “ Diz respeito a afirmação literal do objeto religioso. Os psicólogos nesta posição, aceitam os conhecimentos das teorias psicológicas, desde que não se choquem com suas crenças. É a atitude dos fundamentalistas e dos religiosos ortodoxos. Atitude frequente desses psicólogos é a de atuar a partir do ponto de vista de sua religião e da visão de mundo nela contida valendo-se basicamente de generalizações idealizadas e de um conjunto de regras de comportamento. Esta forma de atendimento choca-se com a proposta do atendimento clínico que propõe uma aceitação total do paciente.

3 – Interpretação redutiva – Vê a religião como um fenômeno social ultrapassado e ingênuo, excluindo a transcendência da linguagem e das práticas religiosas. Esta atitude assemelha-se muito com a negação literal. Os psicólogos nesta posição buscam perspectivas científicas para interpretar, a partir delas, os conteúdos religiosos. O objetivo implícito nesta atitude é o de transformar ou eliminar o campo religioso, reduzindo-o a outras áreas.

4 – Interpretação restauradora – É a atitude que considera a especificidade da experiência religiosa. Os psicólogos nessa posição examinam as crenças e posicionamentos pessoais de seus pacientes e buscam compreender e aproximar-se do fenômeno religioso abrindo-se para vivências, símbolos, metáforas, que o paciente traz. Esta atitude implica em humildade epistemológica e clareza quanto aos próprios pressupostos e adesões religiosas. (COLIATH, 2007, p. 34)

Quando pensamos essas atitudes, fica claro a necessidade de uma compreensão mais ampla do significado da religião para o paciente, assim como a necessidade de conhecer os sistemas religiosos para compreender nosso paciente a partir de seu contexto simbólico, de sua realidade específica. Infelizmente, muitos pensam nas religiões simplesmente como um sistema fechado de regras e ditames morais, perdendo, assim, o potencial que nos é oferecido pelo universo de símbolos, narrativas ou histórias significativas que são os aspectos essenciais das religiões. Tendo posse de toda a possibilidade que a religião nos oferece, podermos ter uma comunicação mais eficaz e significativa para nosso cliente, mobilizando-o por inteiro.

Uma outra grande dificuldade e talvez, a maior dificuldade, se encontra na incapacidade de muitos profissionais em lidar com suas próprias convicções religiosas, pois, muitos acabam por impô-las consciente ou inconscientemente ao paciente. Essa limitação faz com que o profissional perca seu caráter terapêutico, muitas vezes, sendo uma forma deformada de conselheiro espiritual.

Acredito ser válido, quando pensamos o dialogo da psicologia clinica com a religião, considerar as palavras de Jung,

(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente”. (JUNG, 2000b, p.154)

Essa consideração é importante pois, nos leva a pensar não só a clinica psicológica, mas, quaisquer relações humanas quem envolvam a religião devemos considerar que a importância e significado que a minha matriz religiosa tem para mim, também vai ter para uma outra pessoa, assim respeito (mais que tolerância) é a única forma se evitar a violência contra o outro.

Referências bibliográficas

ÁVILA,A. Para Conhecer a Psicologia da Religião, São Paulo, Edições Loyola, 2007

COLIATH , A.A.M. Escolha do Terapeuta Associada a Denominação Religiosa, 2007,98f. Dissertação de Mestrado –Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2007.

JUNG,C.G. Psicologia e Religião, Petrópolis,: Vozes 1999a.

JUNG,C.G. Vida Simbólica Vol. I , Petrópolis,: Vozes 2000a

JUNG. C.G Civilização Em Transição. Petrópolis: Vozes, 2 ed. 2000b .

TERRIN, A.N. O Sagrado Off limits, São Paulo, SP: Edições Loyola, 1998.


[1] Publicado em 30 de outubro de 2011, no antigo blog “Jung no Espírito Santo”. A atual versão foi revista e ligeiramente modificada para a publicação no site da Comunidade Anglicana Bom Pastor (www.anglicana-es.org)

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

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