Scrooge e os Espíritos do Natal : Sintomas, Símbolos e Processo de Individuação

(20 de dezembro de 2011)

No natal de 1843,  Charles Dickens publicou um pequeno conto que se tornou um dos maiores ícones da literatura natalina. Este conto tinha como titulo “A Christmass Carol” cuja tradução mais precisa seria “Um canto(ou cântico) de Natal”, mas, é conhecido como “Um conto de Natal” ou “Uma aventura de Natal”. Passados 168 anos de sua publicação, este conto recebeu adaptações para o cinema (“Um conto de Natal” (1938), “Os fantasmas Contra-atacam” 1988 e “Os fantasmas de Scrooge” 2009) e com animações como “O conto de Natal de Mickey”(1983), Barbie uma canção de Natal(2008) . Vale lembrar que o próprio “tio Patinhas”, em inglês “Uncle Scrooge”, foi inspirado no personagem de Charles Dickens.

Antes de comentarmos o conto, iremos relembrar-lo. Para tanto, eu usei uma versão digital do conto de Dickens, intitulado de “uma aventura de Natal”. Como nesta versão digital não há paginação correta para impressão citarei apenas o texto, sem referências. Caso você tenha interesse em ler o conto clique aqui . Para Ilustrar, usarei imagens do filme “Um conto de Natal” de 1938.

Breve Resumo de Um cântico de Natal

(CONTÉM SPOILERS: Se você não conhecer o conto ou quiser ver um desses filmes, leia ou assista antes, pois neste post contaremos o enredo e o final! Caso você lembre da narrativa pode pular esta parte.)

(Em negrito citação do texto digital)

Em Londres do século XIX, havia um homem chamado Ebenezer Scrooge,“Ora, Scrooge era um nome bastante conhecido na Bolsa, e sua assinatura era um documento valioso, onde quer que ele a colocasse.” Sua casa comercial se chamava Scrooge&Marley. Apesar do sócio de Scrooge, Jacob Marley, ter falecido há 7 anos, Scrooge nunca mudou o nome da firma. Fazia exatamente 7 anos que ele havia morrido, justamente numa véspera de natal.

Scrooge era um homem solitário e avarento. Que detestava todo e qualquer desperdício. E era assim que ele considerava o Natal. Desperdício de tempo e dinheiro.

No geral, Scrooge só tinha por perto seu fiel funcionário Bob Cratchit, um homem simples, dedicado, que suportava trabalhar nas mais miseráveis condições que Scrooge impunha. Era casado e tinha vários filhos dentre eles “Tinzinho”.

“Pobre Tinzinho! Trazia umas muletinhas, e suas
pernas eram sustentadas por um aparelho de metal.”

Nesta véspera de Natal, como fazia de hábito, o sobrinho de Scrooge, Fred, veio a sua loja para convidado-lo para comemorar o Natal com sua família. Isso irritou Scrooge, que via no Natal uma grande besteira. Apesar disso, Fred, um homem alegre, otimista, não se abalou com a posição do tio.

Nessa mesma tarde, Scrooge recebeu a visita de um homem que pedia doações para os necessitados. Scrooge não lhe deu ouvidos, dizendo que não daria nada. Pois, nada tinha a ver com isso, os necessitados que fossem para a prisão ou asilos.

Nessa noite, Scrooge recebe uma estranha visita. Era seu antigo sócio que havia falecido 7 anos antes. Marley tinha preso a si correntes e nessas correntes estavam livros e cadernos, iguais aos que usava quando trabalhava. Marley contou a Scrooge, que ele estava condenado a arrastar aquelas correntes devido a vida que ele viveu. Mas, ele disse que para Scrooge ainda haveria uma chance, pois, naquela noite ele seria visitado por 3 espíritos do Natal.

O primeiro espirito se apresentou a Scrooge, conforme havia sido dito por Marley. O primeiro Espírito se apresentou como o Espirito dos Natais passados. Ele levaria Scrooge visitar alguns locais.

Primeiro, o espírito o levou ao colégio interno onde estudava e, onde passava os feriados e o natal sozinho.

Depois, levou ao ano em que sua irmã levou a noticia que ele não passaria o natal sozinho mais. Com essa visão, o espirito lembrou a Scrooge de sua querida irmã, que morreu cedo. Deixando apenas seu único sobrinho, Fred, deixou-o constrangido.

O espirito passou por cenas de sua juventude, até leva-lo a ver sua ex-noiva, a quem perdeu por ter se deixado levar pelo dinheiro. O espirito o levou a ver sua antiga amada, que se casou e teve filhos com outro homem, enquanto Scrooge vivia em função do dinheiro.

Após, a visita ao passado, apareceu em seu quarto o segundo espirito, o Espirito do Natal Presente, que o levou para passear (invisível) pela cidade.

A primeira parada foi na casa de Bob Cratchit, onde ele pode ver a família e a modesta ceia de natal de seu fiel funcionário. Toma conhecimento do problema do “Tinzinho”, filho de Bob, que tinha problemas de saúde e deficiência física.

Muito surpreendeu Scrooge quando no momento de levantar o brinde.

Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciar seu nome.
– À saúde do senhor Scrooge! dizia Bob. A saúde de meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa! (…)

É preciso, de fato, que seja dia de Natal, replicou a mulher, para que se beba à saúde de um homem tão detestável, ladrão, cruel e sem coração como o senhor Scrooge. (…)- Se eu beber à saúde dele; será só por você e por ser dia de Natal, mas não por ele mesmo.

Em seguida, o Espirito o levou a casa de seu sobrinho Fred, que bebia, jogava e se divertia com a família. Quando veio o assunto do encontro de entre ele e Scrooge. Ele dizia, que seu propósito seria todos os anos convidar o tio para jantar com eles. Por fim, após muita conversa, Fred, levanta o brinde.

Assim, pois, à saúde do tio Scrooge!
– ótimo! A saúde do tio Scrooge!exclamaram todos.
– Um feliz Natal e um feliz ano novo a este querido cavalheiro! exclamou o sobrinho de Scrooge. Que este voto, que ele não aceitará de mim, possa ser para ele o portador de mil felicidades! Portanto, à saúde do tio Scrooge!

Após visitar seu sobrinho, Scrooge foi levado para casa, onde Scrooge aguardou a terceira visita. O terceiro espirito era uma figura sombria, encapuzada, não falava, apenas apontava o caminho. Era o espirito dos natais futuros. O espirito o levou pelas ruas da cidade, até a bolsa, onde ouviu conhecidos conversando sobre alguém que havia falecido, mas, que ninguém tinha interesse em ir ao velório.Posteriormente, o levou a uma cabana, onde pessoas falavam de um morto, do qual haviam saqueado seus bens. Scrooge foi levado ate o quarto onde estava o morto do qual falavam, mas, ele não teve coragem de levantar os lençóis que o cobriram Scrooge pediu para que o espirito o levasse para algum lugar onde alguém tivesse alguma emoção pelo morto, o espirito o levou a um casal que tinha dívidas com o  morto, a emoção que ele viu foi de alegria, pois, o falecido era um credor impiedoso. Scrooge pediu que o levasse a um lugar onde houvesse uma expressão de doçura pelo morto. Ele foi levado por ruas conhecidas até a casa dos Cratchts, lá seu fiel empregado, ainda se lamentava por ter perdido também seu filho, o “Tinzinho”. Por fim, vendo que a hora avançava, Scrooge pede que o espirito revele quem era o morto. O espirito o leva até o cemitério e, entre os túmulos, numa lápide abandonada ele vê o seu próprio nome: Ebenezer Scrooge. Ele fica desesperado, pergunta se ainda há uma chance de mudar o futuro, mas, quando se deu por si, já estava no em seu quarto.

Ao verificar que estava no seu quarto, e perceber  e ainda tinha tempo afirmou:

Quero viver no passado, no presente e no futuro, repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dos três espíritos virá em meu auxílio para tanto.

Ao amanhecer no Natal, Scrooge se levantou tratou de começar a mudar sua vida, a partir das revelações dos espíritos do Natal. Agradecido por ter ainda chance viver, passou a ser simpático com as pessoas, mandou entregar um peru, para ao almoço de natal da família de Cratchit, ao encontrar o homens q lhe solicitaram uma doação, reviu sua posição e fez uma doação que assustou aos homens. Em seguida, se dirigiu a casa de seu sobrinho Fred, assustando a todos com sua presença, mas, ele aproveitou cada momento, desse dia de Natal. No dia seguinte, no trabalho, aumentou o salario de Bob Crachit, de quem se tornou não só um bom patrão, mas, um bom amigo.

Scrooge cumpriu a palavra, e ainda foi muito além. Fez tudo quanto havia resolvido fazer e ainda fez mais. Com referência ao pequeno Tini – que não morreu –, Scrooge foi para ele verdadeiramente um segundo pai. Em breve, tinha-se tornado o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em qualquer outra velha cidade.(…) Seu coração estava alegre e feliz, e isso lhe a bastava. Ele não teve relações com os espíritos, mas manteve a melhor das relações com seus semelhantes, e diziam mesmo que não havia nenhuma pessoa que festejasse com mais entusiasmo as festas de Natal”

Sintomas, Símbolos e Processo de individuação

Apesar de já ter visto os filmes, conhecer a história, ler o texto do Charles Dickens foi profundamente emocionante para mim. O texto de Dickens é atemporal, pois, fala da realidade da alma. Por isso, eu gostaria de ressaltar que o nosso objetivo não é analisar o texto, mas, nos analisar pelo texto. O texto permite que possamos olhar a nossa própria realidade e perceber o Scrooge que existe em cada um de nós. Todo texto ou material arquetípico nos serve como espelho para percebermos nossa própria existência.

E o que seria Scrooge em nossa vida? Seria um desenvolvimento unilateral da consciência. Isto é, é quando a consciência e as funções do Ego se identificam com um certo grupo de valores negligenciando os demais aspectos da totalidade da experiência psíquica. Esse fenômeno poderia ser explicado como “alguém que acredita ser apenas aquilo que gostaria de saber a respeito de si mesmo” (JUNG, 2000a, p. 145).

No caso do Scrooge, no conto de Dickens, ele se identificou com sua avareza, com o ganho de dinheiro, acreditando que não era nada mais que isso. Aparentemente, isso lhe era suficiente. Scrooge, em sua avareza, vivia como se numa ilha de solidão e conforto. Sim, conforto, afinal, era a realidade que ele se permitia viver e acreditava que era a única realidade que ele possuía. Devemos, entretanto, tomar cuidado de não identificar a unilateralidade com aspectos como “avareza” ou “dedicação excessivamente ao trabalho”, qualificando-a com o que a cultura classifica como negativo. Devemos compreender que toda identificação da consciência que negue a totalidade da vida é negativa. Mesmo que possamos associar com coisas positivas, p. ex., um pai que se dedica a todas atividades de sua igreja, colocando-a acima de sua vida familiar pode provocar a mesma situação de unilateralidade descrita acima.

A unilateralidade pode também ser compreendida como um desequilíbrio na dinâmica psíquica ou mesmo um entrave ao desenvolvimento do individuo. Esse desequilíbrio vai gerar no inconsciente uma tentativa reequilibrar o sistema. Essa tentativa de “chamar atenção da consciência” é expressa por meio de símbolos.

Segundo Jung,

“chamamos de símbolo um conceito, uma figura ou um nome que nos podem ser conhecidos em si, mas cujo conteúdo, emprego ou serventia são específicos ou estranhos, indicando um sentido oculto, obscuro e desconhecido.” (JUNG, 2000b, p.189)

Os símbolos possuem um significado desconhecido ou obscuro porque emergem do inconsciente, não são uma criação da consciência. Os símbolos se manifestam como uma tentativa de redirecionar ou modificar a atitude da consciência,  são “tentativas naturais de lançar uma ponte sobre o abismo muitas vezes profundo entre os opostos, e de equilibrar as diferenças que se manifestam na natureza contraditória de muitos símbolos.”(JUNG, 2000b, 259).O símbolo constitui um terceiro elemento, distinto da consciência e do inconsciente, de modo a tentar unificar essas duas instâncias. É importante compreendermos que o que chamamos de símbolo engloba praticamente todas as manifestações do inconsciente, tais como sonhos, atos falhos, chistes, sintomas. Por serem “naturais” isto é, por fazerem parte da organização psíquica natural do homem, os símbolos são compreendidos como uma expressão saudável da psique, mesmo que em sua manifestação possa gerar sofrimento ao Ego.

Geralmente falamos de sintomas quando nos referimos a uma determinada manifestação psíquica que perturba a consciência, indicando assim, uma neurose. De forma geral, Jung compreendia a neurose como um desequilíbrio, uma divisão na psique ocasionada principalmente pela atitude unilateral da consciência.

No caso a história os símbolos que indicam a dissociação de Scrooge são: fantasma de Marley e os  três espíritos do Natal. Apesar do fantasma de Marley ocupar um local secundário na narrativa, ele anuncia a unilateralidade e adverte acerca das consequências dos atos de Scrooge. Do mesmo modo, em nossa vida cotidiana temos “avisos” acerca de nossa unilateralidade, eles podem ser expressos por sonhos, “brincadeiras” de amigos e colegas sobre nossas atitudes, distanciamento de amizades. Muitas vezes, esses elementos anunciam a necessidade de mudança, e quando esses avisos são percebidos evita-se um mal maior.  Sendo mais específico na narrativa de Dickens, Marley anuncia o encontro com os espíritos. Em nossas vidas, esse anuncio já um fim de relacionamento(divórcio), perda do emprego, que antecedem a crise e/ou a explosão dos sintomas.  Muitas vezes não nos damos conta da vida que levamos até essa “primeira explosão” e identificamos como o “surgimento da neurose” nesse momento, não percebendo de todo o percurso anterior.

É nesse momento que os sintomas aparecem. No caso de Scrooge ele foi visitado por três espíritos do Natal.  Me chama profundamente atenção um dado importante, a data. O natal traz implícita a imagem do nascimento de Cristo, e, este nascimento, nos traz a imagem de um renascimento,  como o próprio Cristo afirmou “Necessário vos é nascer de novo.” (Jo. 3.7). Esse novo nascimento é o tema do conto de Dickens e reflete o processo de autorregulação psíquica, que produz  o que chamamos de neurose.

Na história de Scrooge, os espíritos de Natal indica três tempos: passado, presente e futuro. Vejamos, o que Jung fala acerca da neurose (ou dos sintomas neuróticos), no texto “A Situação Atual da Psicoterapia”

Na neurose encontra-se nosso maior amigo ou inimigo. Não se pode apreciá-lo o suficiente, a não ser que, por força do destino, alguém tenha uma atitude hostil perante a vida. (…)

O simbolismo neurótico é ambíguo; aponta ao mesmo tempo para trás e para frente, para cima e para baixo. Em geral, o para frente é mais importante do que o para trás, porque o futuro vem e o passado se vai. (…)O doente não deve aprender como se livrar da neurose, mas como suporta-la. A doença não é um peso supérfluo e, portanto, sem sentido, mas é ele mesmo; ele mesmo como o “outro” que, por comodismo infantil, por medo ou por outra razão qualquer, sempre procurou excluir. Desse modo, como afirma acertadamente FREUD,  fazemos do eu um “lugar de ansiedade”, o que nunca aconteceria se não nos defendêssemos neuroticamente contra nós mesmos. (…)

Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem realmente somos. Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude do eu.  Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. (JUNG, 2000c, p.160-1) (grifos do autor)

Nesse contexto que eu sugiro que podemos pensar nos “espíritos do natal” sob a ótica dos sintomas. No texto de Dickens passa cena que Scrooge presenciou tanto no passado, presente e no futuro lhe causou profundo pesar. Cada cena lhe causava sofrimento, era angustiante ver a vida que não viveu, a vida não vivia e a impossibilidade futura. Isto, além de ver a responsabilidades por seus atos – ou pelos atos que deixou de realizar. Para Scrooge, a experiência com os espíritos correspondeu ao que Jung afirmou ser “a oportunidade de conhecer quem realmente somos.”

Os espíritos mostraram a Scrooge o que ele realmente era: com todo seu dinheiro, ele não passava pessoa pobre, solitária e miserável. Assim são nossos sintomas lançam diante de nossos olhos nossa vida, a vida que rejeitamos. Nossos medos, nossos inconfessos desejos (como nos fala Carlos Drummond de Andrade) que nos corroem a alma. Isso ocorre por necessidade psíquica. A unilateralidade patológica da consciência é uma violência contra o próprio individuo, pois, se não tratada pode significar a amputação de possibilidades de desenvolvimento e vida do individuo. A neurose é a psique gritando por socorro.

Na verdade, a neurose contém a psique da pessoa ou, ao menos, parte muito importante dela. (…) pois, na neurose está um pedaço ainda não desenvolvido da personalidade, parte precisa da psique sem a qual o homem está condenado a resignação, amargura e outras coisas hostis a vida. (JUNG, 2000c, p. 158)

Devemos observar que os sintomas de Scrooge, o levaram a considerar e desenvolver sua vida. Abrindo-o para a possibilidade que já havia em si mesmo. Os espíritos não sugeriram que fizesse nada, apenas, o confrontaram com sua própria vida. E, vendo a si mesmo, ele pode fazer novas escolhas.É como  Jung afirmou “Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos.” (Jung, 2001, p.54)

Assim, o sintoma é sempre uma tentativa de cura. Isto é, uma tentativa de modificação da postura, atitude ou unilateralidade excessiva, que se apresenta ao individuo como algo estranho a si mesmo. Sim, e é estranho, pois, o individuo já não se reconhece em sua própria vida. O símbolo/sintoma visa unificar, trazer o individuo ao dialogo, a negociação com sua própria realidade.

Esse processo de unificação, em tornar o individuo umindividuum em termos psicológicos, é o que Jung denominou processo de individuação. 

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo.Podemos pois traduzir “individuação” como “tornar-se si-mesmo” (Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (…)

A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculdades que em si mesmas são universais. (…) A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna “egoísta”, no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo ou do individualismo. (JUNG, 2001, p. 49-50)

Assim, o processo de individuação é um processo natural, isto é, uma tendência natural da psique que visa o desenvolvimento individual e coletivo. Esta pode ser percebida no principio de Centroversão defendida por Neumann no processo de integração do  Ego, assim, como na Função Transcendente que visa unificar os opostos (consciente e inconsciente) formando um individuum.

No caso de Scrooge, o confronto com si mesmo, por meio das imagens dos espiritos do natal produziram uma atitude integradora, como ele afirma “Quero viver no passado, no presente e no futuro, repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dos três espíritos virá em meu auxílio para tanto.”  Viver a experiência do passado, presente e futuro significa viver a vida de forma integra, viver a existencia na plenitude do momento. Como o texto nos diz,

Em breve, tinha-se tornado o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em qualquer outra velha cidade, aldeia ou povoação do nosso velho mundo.

Alguns riram da mudança operada nele, mas ele os deixou rir e não se incomodou. Scrooge era bastante inteligente para compreender que nada de bom se passa em nosso planeta que não comece por provocar a hilaridade de certas pessoas. E como estas pessoas são destinadas a continuarem cegas, a Scrooge tanto fazia que elas manifestassem seus sentimentos por uma gargalhada ou por uma careta.  Seu coração estava alegre e feliz, e isso lhe a bastava.

A consideração adequada da realidade interior e exterior, isto é, das necessidades reais possibilitam que o individuo seja realmente uma “pessoa melhor”. Isso não significa que ela seja compreendida por todos, como o texto nos diz, alguns apenas acharam que ele enlouquera. Entretanto, o mais importante era viver a vida, fazer o necessário. De modo que ele pudesse se sentir inteiro, como o coração alegre e feliz. Isso não significa que deixou de ter problemas, mas, que ele os enfrentou considerando a totalidade de seu ser. Com a mudança da atitude da consciência, os sintomas não são mais necessários.

Ele não teve relações com os espíritos, mas manteve a melhor das relações com seus semelhantes, e diziam mesmo que não havia nenhuma pessoa que festejasse com mais entusiasmo as festas de Natal”

Não ter relações com os espiritos significa que eles não eram mais necessários. O natal era festejado como um simbolo vivo, um marco de reinicio. Não apenas uma data fixa, mas, um simbolo que seria vivido todos dos dias do ano, e todos os dias que de sua vida.

Olhando através do conto de Charles Dickens podemos ver a nossa realidade. Seja pelos sintomas, sonhos, eventos sincronisticos a psique sempre nos impele ao desenvolvimento, a uma consideração mais adequada de nossa vida interior e exterior. O processo de individuação não é sobrenatural ou mistico, é uma possibilidade concreta que se coloca diante de nós a cada escolha que fazemos. A busca pela integridade da alma deve ser uma constante.

Como esse post, é um post natalino, espero que todos possamos ouvir os espiritos do natal que atuam em nossas vidas. Que possamos compreender que no Scrooge que muitas vezes nos tornamos há uma possibilidade de vida vibrante. E que o Natal, data simbolizada pelo nascimento de Cristo, possa também nos inspirar a um novo nascimento.

Referências bibliográficas

JUNG, C.G. Natureza da Psique, Vozes:Petrópolis, 2000a.

JUNG, C.G. A vida Simbólica, Vozes: Petrópolis, 2000b

JUNG, C.G.  Civilização em Transição, Vozes:Petrópolis, 2000c.

JUNG, C.G. O Eu e o Inconsciente, Vozes: Petrópolis,2001.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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