15 de maio de 2010
No post “Subjetivismo, realidade psíquica e esoterismo” eu comentei acerca dos motivos pelos quais Jung é rotulado como esotérico. Entretanto, não podemos negar que a importância dos estudos de Jung acerca da religião. Sua compreensão acerca da Religião fez com que fosse taxado, por muitos estudiosos como hermética (ou mesmo confusa, por considerarem seus conceitos não eram claros ).
O interesse de Jung pela religião pode-se dizer vinha de berço. Pois, toda sua família amplamente arraigada no protestantismo (seu pai, o avô, 7 de seus tios era pastores). E, as discussões teológicas que acompanhou na infância e juventude geraram esse interesse especial pelo estudo da religião. Em especial sobre o modo como a religião atuaria na psique do individuo.
Apesar de ser de origem protestante, Jung não se restringia nem ao protestantismo nem ao cristianismo para falar de religião. Ele compreendia as religiões como a expressão uma expressão psíquica fundamental, não defendia uma ou outra religião, mas as tratava com a mesma dignidade. Para Jung, a verificação se o conteúdo da religião ou sua teologia era correta ou não, caberia aos teólogos, não ao psicólogo, pois,
Quando a Psicologia se refere, p. ex., a concepção virginal, só se ocupa da existência de tal ideia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer sentido. A ideia é verdadeira, na medida em que existe. (JUNG, 1999a, p.8)
O psicólogo, que se coloca numa posição puramente científica, não deve considerar a pretensão de todo credo religioso: a de ser possuidor da verdade exclusiva e eterna. Uma vez que trata da experiência religiosa primordial, deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso, abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele. (Jung, 1999a, p.11)
Jung compreendia o fenômeno religioso como um fenômeno natural, inerente a natureza humana, desde modo, ao falar da religião Jung não propõe nada de metafisico, pois, seu foco recai sempre sobre o individuo, sobre a cultura e o inconsciente coletivo.
Um dado que não podemos perder de vista é que Jung era sobretudo um clínico. Por mais que em alguns textos (como no Presente e Futuro) ele fale de uma função social da religião ou da religião sob uma perspectiva social, seu olhar era de um clínico.
Religião para Jung
a) Confissão Religiosa e Religião
Para pensarmos religião para a psicologia analítica, devemos primeiro distinguir confissão religiosa de Religião.
Jung utilizava o termo “confissão religiosa” compreendendo que
A confissão admite uma certa convicção coletiva, ao passo que a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja, extramundanos. A confissão compreende, sobretudo, um credo voltado para o mundo em geral, constituindo, assim, uma questão intramundana. (Jung, 1999b, p.9)
A confissão coincide com a Igreja oficial ou, pelo menos, se constitui como uma instituição pública, à qual pertencem não apenas os fiéis mas também um grande número de pessoas indiferentes à religião, que se integram por simples hábito. Aqui torna-se visível a diferença entre confissão e religião. Pertencer a uma confissão, portanto, nem sempre implica uma questão de religiosidade mas, sobretudo, uma questão social que nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo. (ibid, p.10)
Todos os aspectos sociais que envolviam a religião/religiosiade Jung compreendia como “confissão religiosa”. Isso se devia ao fato de Jung utilizar a compreensão clássica do termo Religio que “[…] os vocabulários latinos atribuem, em geral, significados correntes entre os autores clássicos: ‘escrúpulo’, ‘consciência’, ‘exatidão’, ‘lealdade’ e outros afins.” (FILORAMO et PRANDI, 1999, p. 255). A compreensão de Religio como relacionada ao verbo Religare (religar, reatar) surgiu posteriormente, no século IV, com Lactâncio, grande erudito que era chamado de o “Cicero cristão”, que adequou o uso do termo já era utilizado no mundo latino à teologia cristã. Deste modo, Jung compreendia
a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego originá-rio do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados.(JUNG, 1999a,p10)
Nesta citação de Jung, devemos observar que essas “potencias” são expressões da dinâmica psíquica que se fazem perceber através do sistemas simbólicos oferecidos pela cultura(as confissões religiosas). E, assim podemos entender quando a afirmação de que “os deuses se tornaram doenças”(JUNG, 2003, p. 43). Essas potencias psíquicas que não encontram mais expressão por vias culturais se somatizam.
As religiões, desse modo, são sistemas simbólicos que, através da mediação das potencias metafísicas ( deuses, anjos etc..), podem favorecer a relação do individuo consigo mesmo, contribuindo com seu desenvolvimento. E, isso poderia ou não coincidir com as confissões religiosas.
Nós diferenciamos a confissão religiosa de religião. Contudo, essa caracterização usada por Jung não é comum em nossos dias o que gera confusão para quem começa estudar a psicologia analítica. ao que ele chamou de confissão religiosa compreende o que chamamos de religião institucional, e ao que ele denomina religião engloba tanto a religiosidade quanto a espiritualidade.
b) Função Religiosa
Jung indicava a função religiosa como um dos pontos de divergência da psicanálise, segundo ele,
Este ponto de vista é a terceira característica que diferencia minhas concepções das de Freud. E por isso me acusam de misticismo. Contudo, não sou responsável pelo fato de o homem espontaneamente ter desenvolvido, sempre e em toda parte, uma função religiosa e que, por isso, a psique humana está imbuída e trançada de sentimentos e ideias religiosos desde os tempos imemoriais. (Jung, 1989, p. 328)
A definição de função religiosa não é clara, talvez, podemos dizer que Jung aponta a existência da função religiosa mas não a definiu formalmente. A função religiosa é uma função natural da psique (inerente a psique humana) que se caracteriza pela atribuição de um significado numinoso a quaisquer elementos pessoais, culturais ou da natureza que possibilite tal relação. (cf nosso artigo sobre o numinoso).
Numinoso foi o termo utilizado por Rudolf Otto para se referir ao elemento fundamental e irracional da experiência religiosa que poderia ser percebido como “divino” – esse divino se apresentaria ao individuo como algo misterioso (fora da realidade humana ou diferente da realidade humana), poderoso ou tremendo (geraria temor, dando ao homem a sensação de criatura, dado seu poder e majestade) e Fascinante (por emanar pureza e perfeição, impelindo o individuo a adoração, reverência ou respeito).O Numinoso descrito por Otto, estaria intimamente relacionado com a experiência religiosa. Jung compreendeu a importância do estudo de Otto e transportou esse termo para a psicologia, adequando-o ao contexto da psique, retirando seu aspecto sobrenatural ou metafísico.
Como exemplo, podemos vislumbrar a função religiosa, como atribuição de sentido numinoso, como o temor irracional que algumas pessoas tem do som do trovão. Mesmo reconhecendo racionalmente que o som do trovão não oferece perigo, ou estando em local seguro, algumas pessoas são tomadas por um temor e tremor. Jung diria que o “homem de um milhão de anos” de mexeu dentro dela. Pois, o trovão em todos os temos foi uma expressão da presença ou vontade divina, mesmo que racionalmente não reconheçamos como tal, o inconsciente reconhece e o significa como tal.
Como dissemos a função religiosa atribuirá um significado simbólico que indicará algo maior ou superior ao individuo (isto é, ao Ego). Que impõe ao individuo (ego) uma transformação ou mudança de atitude da consciência – frequentemente observada nas conversões religiosas.
Dada a importância da função religiosa, como elemento de significação e transformação do individuo, não podemos ignorar sua intima relação com o Self, que impele o individuo ao desenvolvimento ou amadurecimento psíquico. Neumann, nos chama atenção para o fato de que
o Self sempre se “disfarça” ou se “veste” como o arquétipo da fase para qual o progresso deve avançar. Ao mesmo tempo, o arquétipo dominante anteriormente é constelado de tal modo que seu lado “negativo” aparece. (NEUMANN,2000, p. 229)
Assim, podemos dizer que a função religiosa é uma expressão eixo ego-Self, onde a função religiosa se manifestaria orientando e compensando as atitudes do Ego, favorecendo o equilíbrio e desenvolvimento psíquico. Por isso, Jung compreende que os sistemas religiosos podem ser benéficos aos indivíduos. Através das religiões o individuo poderia desenvolver uma atenção conscienciosa aos seus processos internos, por meio das imagens impessoais presentes no conjunto simbólico que compõe cada sistema.Um exemplo dessa relação da religião com os processos psiquicos são os sonhos. Os sonhos sempre foram objeto das religiões, pois, através deles, o divino se manifestava na esfera humana, orientando as ações tanto dos indivíduos quanto dos grupos.
O inconsciente coletivo é uma função dinâmica e o homem deve manter-se em contato com ele. Sua saúde espiritual e psíquica depende da cooperação das imagens impessoais. Essa é a razão principal por que o homem sempre teve as suas religiões.
O que são as religiões? São sistemas psicoterapêuticos. E o que fazemos nós, psicoterapeutas? Tentamos curar o sofrimento da mente humana, do espírito humano, da psique, assim como as religiões se ocupam dos mesmos problemas. Assim, Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos de psicoterapia. Não estou fazendo jogo de palavras ao chamar a religião de sistema psicoterapêutico. É o sistema mais elaborado, por trás do qual se esconde uma grande verdade prática. (JUNG, 2000c, p. 167-8)
– Algumas considerações pessoais…
Ao comentarmos sobre a psicologia analítica e religião, não podemos deixar de fazer um comentário que é pessoal. No geral, as pessoas que não conhecem a teoria junguiana tendem a considerar Jung de religioso ou esotérico. O padre Victor White, que trocou longa correspondência com Jung, tinha um ponto de vista interessante, ele dizia que,
Creio que a amizade de Jung apresenta um desafio muito mais sério e radical à religião tal como a conhecemos do que um dia o fez a hostilidade de Freud. (WHITE apud PALMER, 2001, p.214)
Os que consideram Jung como esotérico ou religioso, desconhecem na verdade que ele era rejeitado pelos teólogos por possuir uma postura subjetivista e considerar que as manifestações religiosas como manifestações psíquicas – o que lhe rendia a acusação de psicologismo.
Acredito que deveríamos julgar a teoria junguiana em seu próprio contexto, isto é, como uma teoria psicológica. Eu já conheci pessoas que inicialmente se interessaram pela psicologia analítica, por Jung respeitar a religião, mas depois ao compreender que o pensamento junguiano não era religioso, o rejeitaram. É importante compreendermos a seriedade com que Jung pesquisava e trabalhava. Ele tinha como foco a compreensão dos processos psíquicos, para assim, poder contribuir com seus pacientes. Sua teoria expressa justamente essa preocupação.
Jung e a psicologia analítica não se ocupa de aspectos teológicos, soteriológicos ou escatológicos da religião, isso cabe ao teólogo e ao ministro religioso. Como teoria e dentro do campo da psicologia a contribuição de Jung é importante por compreender a religião/religiosidade como um elemento natural e próprio do ser humano, isto é, a religião, assim como a arte, emerge de uma esfera psíquica (arquetípica) saudável, que visa o desenvolvimento ou amadurecimento do homem. A religião se tornaria neurótica na medida que expressasse a neurose de seus lideres, em dogmas e doutrinas.
O respeito que Jung tinha em relação a religião, se estendia a vivência religiosa tanto dos pacientes quanto dos psicólogos/analistas junguianos. Pois, a vivência saudável da religião/religiosidade expressa o processo de individuação de cada um.
Referencias:
FILORAMO,G.; PRANDI, C. As Ciências das Religiões, São Paulo: Paulus, 1999.
JUNG,C.G. Psicologia e Religião, Petrópolis,: Vozes 1999a.
JUNG,C.G. Presente e Futuro, Petrópolis: vozes, 1999b.
JUNG,C.G. Vida Simbólica Vol. I , Petrópolis,: Vozes 1999a.
JUNG,C.G. Freud e a Psicanalise , Petrópolis,: Vozes 1989.
JUNG,C.G. Estudos Alquímicos, vozes: Petrópolis, 2003.
NEUMANN, E. O Medo do Feminino – E outros ensaios sobre a psicologia feminina, São Paulo: Paulus, 2000.
PALMER, M. Freud e Jung – sobre a religião, São Paulo, Edições Loyola, 2001.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes