Complexos Culturais    

Dra. Kelly Guimarães Tristão

(Este texto é um fragmento da tese de doutorado de Kelly Guimarães Tristão “O CAPSIJ como lugar de cuidado para crianças e adolescentes em uso de substâncias psicoativas. 2018.”

Para compreender o conceito de complexos culturais, elemento importante especialmente para o entendimento do lugar dos indivíduos no grupo social a que pertencem, e como esse grupo os afeta também inconscientemente, é preciso tecer uma articulação entre a teoria dos complexos (Jung) e a teoria do inconsciente cultural (Henderson). 

A Teoria dos complexos é uma construção teórica fundamental na perspectiva junguiana.  Segundo Jung, um complexo de tonalidade afetiva “é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência” (2013, p. 43). Assim, o complexo possui uma “tonalidade emocional própria”. O complexo tem como núcleo o arquétipo, ao redor do qual são atraídas, e se amalgamam num mesmo lugar psíquico, diversas imagens, ações, sentimentos, com qualidade similar a seu núcleo.  Dotado de grande coerência interna, possui uma certa autonomia, comportando-se no âmbito da consciência como que tivesse voz própria.  

A teoria do Inconsciente cultural, outro nível importante para a compreensão do conceito de complexo cultural, advém de Joseph Henderson (1984), que introduziu a ideia de um nível cultural da psique chamado de “inconsciente cultural”. A teoria de Henderson abre uma porta para a teoria junguiana compreender a psique também num espaço entre o nível pessoal e o nível arquetípico; possibilitando, assim, o entendimento de que tanto o nível pessoal como o coletivo são culturalmente influenciados.  

Nessa direção, entende-se o coletivo a partir de duas dimensões: uma arquetípica, que é natural e transcultural; e outra cultural, que é histórica, étnica e estereotípica. A partir dessas dimensões, os seres humanos também realizam aquisições via inconsciente. (Araújo, 2002).  

Parece estar ele falando de temas culturais que influenciam o indivíduo, pois localiza essas estruturas, que chama de “primitivas”, numa espécie de “alma étnica”, material simbólico derivado da cultura. Do ponto de vista psicológico, as sobrevivências seriam o conteúdo formativo do inconsciente, não só da face individual, mas também da coletiva, independente da ‘fachada superficial do psiquismo consciente’ (Araújo, 2002, p. 30). 

Tanto quanto o corpo e a dimensão ideativa-emocional, a sociedade e a cultura são fontes da realidade simbólica, e através de seus diferentes símbolos torna-se possível comparar as culturas e perceber suas semelhanças estruturais, sem perder de vista as diferenças históricas e culturais (Araújo, 2002).  

Os complexos culturais são de campos energéticos dinâmicos que promovem uma distorção do mundo para a consciência, gerando respostas automáticas para o outro. Isso torna a realidade do outro invisível, ainda que tal atitude seja inconsciente a nós mesmos. (Singer, 2012). Trata-se, portanto, de um […] agregado emocionalmente carregado de memórias históricas, emoções, ideias, imagens e comportamentos que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico que vive na psique de um grupo e é compartilhado por indivíduos dentro de um coletivo identificado (Singer, 2012, p. 5 citado por Novaes, 2016). 

Os complexos culturais são compartilhados por indivíduos dentro de um contexto grupal ou coletivo especificado. Segundo Singer (2010), para entender aspectos emocionais, ou mesmo psicopatológicos, que circundam determinados grupos, é importante compreender os complexos culturais envolvidos. Isso pode ser compreendido a partir da ideia de que os complexos culturais são fundados em repetidas experiências históricas “que se enraizaram na psique coletiva de um grupo e na psique de cada um dos membros de um grupo, e eles expressam valores arquetípicos para o grupo. Como tal, os complexos culturais podem ser pensados como os blocos de construção fundamentais de uma sociologia interior” (Singer, 2010. p. 6). 

Pode-se compreender, portanto, algumas características fundamentais dos complexos culturais, conforme assinala Klimber (2003): 

I. Os complexos que atuam no contexto grupal do inconsciente cultural organizam crenças e emoções coletivas de maneira a favorecer a organização de uma parte significativa da vida do grupo, assim como fantasias que podem operar dentro da psique individual. Os complexos culturais intermediam o relacionamento de uma pessoa com o um grupo, cultura ou etnia específica de referência. 

2. Os complexos cultuais operam de forma autônoma na psique de cada indivíduo ou na psique do grupo. Isso implica dizer que eles ordenam compreensões restritas à percepção das diferenças, ou mesmo enfatizam as diferenças em estereótipos. Por outro lado, os complexos culturais acentuam a identificação grupal ou a diferenciação do grupo com o outro externo a ele, favorecendo, desta maneira, sentimentos de pertença ou de forte alienação. 

3. Ao passo que organizam as emoções, atitudes e comportamentos que constituem o grupo, os complexos culturais operam como campos energéticos afetados. Entretanto, a dinâmica é impessoal “os complexos culturais não fazem acepção de pessoas, não cuidam de ninguém além do grupo […] Eles simplesmente impulsionam as pessoas para o sentimento e a ação” (p. 230). Dessa forma, produz-se nos membros do grupo, através de uma indução psicológica, sentimentos de comunidade.  

4. Os complexos culturais favorecem a relação emocional do indivíduo com os modelos culturais do grupo.  Quando operam de maneira positiva, os complexos culturais constituem um sentimento individual de pertença. A identidade é, dessa forma, organizada a partir de uma identificação com o grupo (cultural, étnico, racial ou social). Da mesma forma, ao se constelar a função negativa do complexo cultural, esta promove a construção de estereótipos e preconceitos que fundamentam atitudes que enxergam o outro como farsante. 

5. Os complexos culturais proporcionam ao indivíduo e aos grupos um senso de pertença e identidade em uma continuidade histórica, os pressupostos emocionais compartilhados significam que o arquétipo do Self (princípio organizador) é evocado por complexos culturais, que então lhes disponibilizam toda a energia nos níveis arquetípico e pessoal da psique. É necessário dizer que isso pode tornar os complexos culturais muito perigosos (como a multidão do linchamento), mesmo que eles permitam, em outros momentos, inspirar o espírito coletivo de maneiras mais positivas (patriotismo, por exemplo). 

Ao se tentar compreender e organizar a história psicológica de determinada cultura, através dos complexos culturais, verifica-se que a memória cultural não se relaciona somente aos membros da cultura/grupo, mas à própria cultura/grupo que produz seus próprios campos emocionais. O memorial cultural se utiliza da psique individual de seus membros para difundir afetos e ideologias, de maneira a moldar valores, prescrições, rituais, expectativas e a própria história do grupo. Nessa direção, a maneira como os grupos/culturas concebem a dívida para com o passado, bem como as reparações exigidas do futuro, são profundamente influenciados pelos complexos culturais (Singer, 2003).  

A exemplo, se a experiência do espírito do grupo, a nível grupal, é positiva, a ligação do grupo não obrigatoriamente irá ativar um sentimento de ódio arquetípico ao externo ao grupo. Se de outro modo, a experiência do espírito grupal foi negativa, pode-se disparar as defesas arquetípicas do espírito grupal. Assim, pode-se refletir sobre os complexos culturais como “blocos de construção” elementares para conceber a construção do nível cultural da psique grupal e dos membros do grupo. 

Defesas arquetípicas do espírito grupal 

O espírito grupal diz de uma representação da experiência matriz na vida do grupo. Quando essa experiência é considerada bem nutrida e saudável, o espírito grupal sustenta e orienta o grupo e cada membro. Do contrário, quando o espírito do grupo está traumatizado, vulnerável ou ferido, ativam-se as “defesas arquetípicas”, que podem assumir uma energia violenta e agressiva, a fim de proteger o “valor cultural sagrado” e a possibilidade de extinção do grupo (Singer, 2003). Nessa compreensão do complexo cultural, é preciso entender três componentes fundamentais: (i) as feridas traumáticas do grupo, lugar ou valores que conduz o espírito do grupo; (ii) o medo de extermínio do espírito pessoal ou do grupo por um estrangeiro; (iii) o surgimento do guadião/protetor, ou vingador, promovendo a defesa aos “perseguidores” do espírito grupal. 

As defesas arquetípicas do grupo, ativadas em alguns complexos culturais, direcionam e transformam o espírito agressivo do grupo. “Eu vejo essa resposta como automática, reflexiva, impessoal e, de certa forma, a maneira mais natural para a psique grupal no aperto de um complexo cultural reagir” (Singer, 2003, p. 203). Assim, a potência dos complexos culturais, que originam tais conflitos, se deve ao caráter autônomo dos complexos. Ou seja, é como se eles adquirissem uma vida própria, “não só na resposta do grupo aos ataques ao seu espírito coletivo, mas também na forma como parecem assumir a residência permanente no cultural nível da psique no indivíduo” (p. 205). 

Assim, os grupos, o lugar dos indivíduos no grupo e os atravessamentos inconscientes nos indivíduos podem ser compreendido pelos complexos culturais, seja pelas características de pertença grupal, seja pelas defesas arquetípicas ativadas, em especial nas relações estabelecidas no espaço de cuidado, ou mesmo nas projeções realizadas pelo externo  ativadas pelos complexos culturais que envolvem o grupo no qual o indivíduo está inserido. 

REFERENCIAS 

Araujo, F. C. de. (2002). Da cultura ao inconsciente cultural: psicologia e diversidade étnica no Brasil contemporâneo. Psicologia: Ciência e Profissão, 22(4), 24-33. Recuperado em 14 de junho de 2017, de 2 https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000400004 

Jung, C. G. (2013). A Natureza da Psique. (10ª ed.). Petrópolis: Vozes. 

Kimbles, Samuel, L. (2003). Cultural Complexes and Collective Shadow Process. In: Beebe, J. (org). Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 211-234). Canadá: Daimon. 

Singer, T. (2003). Cultural Complexes and Archetypal defenses of the group spirit. In: Beebe, John. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 191-211).  Toronto: Daimon. 

Singer, T., & Kaplinsky, C(2010). The Cultural Complex.  (Reprinted through the courtesy of the editor/Publisher: “Cultural Complexes in Analysis”. In Jungian Psychoanalysis: Working in the Spirit of C.G. Jung, edited by Murray Stein pp. 22-37. Open Court Publishing Company, Chicago.).  Recuperado de https://aras.org/sites/default/files/docs/00042SingerKaplinsky.pdf em 10 de agosto de 2017 

Esta entrada foi publicada em Uncategorized. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *