Em nossa vida cotidiana falamos muito em limites, nos mais diferentes contextos e sentidos: falamos em ter limites, colocar limites, reconhecer os limites, estar no limite e superar os limites etc. A ideia de limite pode comportar uma vastidão de possibilidades figurativas e existenciais. Assim, gostaria de pensar a noção de limite sob a perspectiva da psicoterapia, para tanto vou explorar a ideia de limite em três imagens ou perspectivas: o contorno, a margem e a fronteira
Antes de abordamos essas imagens, gostaria de lembrar a etimologia, a origem, da palavra limite, ela vem do latim limes que indicava o caminho entre dois campos – o que chamamos popularmente de “caminho da roça” ou mesmo de trilha. Dessa imagem, o limes,-ites, é um marco que simultaneamente indica tanto o fim do campo, quanto o início do outro campo, assim com a interseção, o encontro dos dois campos.
O limite, o limes, como o caminho entre dois campos, não só marcava o início ou o fim de um território, mas indicava também a forma desse espaço ou campo. Posteriormente, os cartógrafos, utilizavam os caminhos, rios e montanhas para desenhar os marcos, os limites que davam forma aos reinos e territórios. Assim, podemos compreender o primeiro significado importante da ideia de limite, que é o contorno.
O contorno expressa a forma, expõe a figura. Precisamos antes fazer uma distinção: fomos acostumados a pensar no contorno externo, vindo do social das regras, dando a forma esperada pelas expectativas coletivas. Esse é o contorno mais aparente, intimamente relacionado a persona, que media a relação social mais adequada, entre eu e o outro. Contudo, há outro contorno mais sutil que é tão importante quanto o primeiro, que é o contorno interno, que delineia o ego e suas relações.
Duas das funções mais importantes do ego é a autopercepção e o autorreconhecimento. Para essas funções é necessário que o ego tenha um contorno claro, capaz de distinguir e perceber sensações do corpo, sentimentos e complexos– uma vez delineados, o ego pode se relacionar com eles, sem que seja tomado pelos mesmos. Quando esse contorno não é delineado na infância, o indivíduo vai apresentar uma dificuldade de expressão dos afetos e sentimentos (quer seja pelo excesso ou pela falta), assim como de se perceber na relação com os outros. Quando recebermos um contorno adequado, isto é, quanto nosso ego é constituindo de forma estável, podemos ter a sensação de integridade e autoestima necessárias a uma vida saudável.
Muitas vezes, a função da psicoterapia é ajudar a criar contornos para o paciente, para ele possa se perceber, desenvolvendo a própria autoimagem, autoconceito e autocuidado. Esse contorno, essa experiência de ter continência, de estar em si que é tão importante. Os contornos nos dão forma interna e externa.
Outra imagem para pensar o limite é a margem, escolhi essa imagem visualizando um rio. A margem indica o caminho, o espaço de fluxo. Em suas margens o rio produz vida, movimento, nutrição. Quando enche, quando transborda pode produzir destruição e morte.
A margens delineiam o curso do rio, seu movimento. Assim também é nossa vida, para seguir o curso precisamos compreender e respeitar nossas margens. Gosto de pensar uma margem como nosso corpo e nossas necessidades físicas; a outra é nossa psique e suas necessidades espirituais. Enquanto estivermos respeitando nossas margens teremos segurança que propicia a vida, o fluxo necessário para seguirmos em frente, vivendo nosso processo de individuação criativamente, dentro de nossos limites naturais.
Nossa vida cotidiana, frequentemente, nos impele ao excesso, a transbordar e romper com nossas margens. Seja qual for o excesso (trabalho, comida, religião, relacionamento) ele produzirá sofrimento e dor. Muitas vezes, levados pelos excessos, nos distanciamos de nossas margens, de nosso curso natural, a tarefa da psicoterapia é nos ajudar e reencontrar nossas margens, e nesse sentido Jung afirmou “somente aquilo que realmente somos tem o poder de curar-nos”.
A terceira imagem do limite é a fronteira. A fronteira indica o fim e o início, ou marca os inícios. Na mitologia romana, temos uma interessante divindade dos limites e das transições, o deus Janus ou Jano. A peculiaridade de Janus era justamente por ser um deus bifronte, isto é, tinha duas faces uma que dirigia para frente e outra para trás da cabeça, ou seja, ele olhava para frente e para trás, passado e futuro, para dentro e para fora. Janus era, por excelência, o deus dos começos – pois, todo limite nos conduz ao novo, ao início. Por isso mesmo, nosso primeiro mês do ano, janeiro tem seu nome em homenagem ou referência a Jano.
A fronteira nos coloca diante da possibilidade das transições e da transcendência. Estamos sempre atravessando novas fronteiras sejam elas do tempo, dos espaços das atitudes. Essas travessias nos colocam diante do mistério da vida, nos desafiando a viver. A cada manhã atravessamos várias fronteiras, mas, geralmente não notamos isso. A sabedoria antiga nos ensinava que ao atravessar qualquer fronteira já estávamos sob o julgamento de Deus – o obter o sucesso ou o retorno seguro só aconteceria “se Deus quiser”.
Assim, sem atravessar os limites, sem ultrapassar as fronteiras não atenderemos o chamado de nossa aventura, não conheceremos a vontade de Deus, e o mistério da vida não se revelará. A função da psicoterapia é encorajar a travessia, é dar suporte ao enfrentamento do novo, auxiliando ao indivíduo nesse novo caminho que se abre. Nessas três imagens o contorno, a margem e a fronteira temos referencias importantes para compreendermos que os limites não se reduzem a normas e regras, mas expressam aspectos fundamentais da vida e os quais não há individuação.
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Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Diretor do Centro de Psicologia Analítica do CEPAES. Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” desde 2012 Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 99316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes