(11 de julho de 2010)
Este post é uma complementação dos posts “Psicologia Analítica e Religião” e “Psicologia Analítica Cristã?”. No primeiro apresentei alguns aspectos acerca de como a psicologia analítica se compreende a religião – fazendo algumas diferenciações entre função religiosa, religião e confissão religiosa. No post “Psicologia Analítica Cristã? ” discuti a relação entre a psicologia(de forma geral) e cristianismo(o que podemos expandir para religião de forma geral), pensando no cuidado que devemos ter para não fazermos misturas que podem prejudicar tanto uma quanto a outra. Contudo, não foi discutido de forma específica a compreensão junguiana da função psicológica da religião.
Quando perguntamos “qual a função psicológica da religião?” a resposta mais correta (sob o prisma junguiano)seria: “Para quem?” ou “ Em que contexto?”, isso porque a religião é um fenômeno de complexo, e não há uma resposta simples que valha para todos os contextos. Assim,devemos separar o aspecto arquetípico da religião do aspecto pessoal(subjetivo) da religião.
Ao qualificar a religião como arquetípica estamos afirmando que há na psique uma tendência natural a produzir símbolos e a atribuir/reconhecer neles um sentido numinoso. A religião e a arte surgem do mesmo “solo arquetípico”, a diferença esta no fato da arte emergir do espanto do homem frente a natureza e possibilidade transforma-la, imprimindo-lhe significado, dando sentido a vida. A religião, por outro lado, emerge do espanto do homem frente frente as forças incompreensíveis da natureza e frente a morte. a religião é a possibilidade do homem lidar com essas potências invisíveis, atribuindo significado/sentido, especialmente no que diz respeito a morte, se configurando como a possibilidade do homem se afirmar frente o desconhecido, superando o mistério da morte. Através da religião o homem encontra um sentido que o torna capaz de viver e enfrentar a morte Toda religião prepara o individuo para a vida, na medida em que o prepara para morte.
Na vida do “homo religiosus” a religião atravessa os vários campos de sua psique, assim, como o poeta Khalil Gibran, fala em seu belíssimo livro “O Profeta” nos diz,
Então UM VELHO sacerdote disse: “Fala-nos da Religião.” E ele disse:
“Tenho eu falado de outra coisa hoje?
Não é a religião todas as nossas ações e reflexões?
E tudo o que não é ação nem reflexão, mas aquele espanto e aquela surpresa sempre brotando na alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou manejam o tear?
Quem pode separar sua fé de suas ações, ou sua crença de seus afazeres?
Quem pode espalhar suas horas perante si, dizendo: “Esta é para Deus, e essa é para mim; esta é para minha alma, e essa é para meu corpo?(…)
Vossa vida cotidiana é vosso templo e vossa religião.
Todas as vezes que penetrais nela, levai convosco todo vosso ser” (GIBRAN, 1976, p. 75-6)
Joseph Campbell(2002) nos dá uma boa perspectiva da amplitude da função da religião quando ao discutir a função dos mitos (lembrando que segundo Campbell, “mitologia é como chamamos a religião dos outros”), segundo ele, são quatro as funções básicas da mitologia/religião:
1 – Função Mística ou Metafísica
2 – Função Cosmológica
3 – Função Social
4- Função Pedagógica
A função mística ou metafísica corresponde a abertura ao desconhecido, ao mistério da vida e da morte. Através da religiões o homem amplia sua percepção do mundo, integrando a sua vivência uma realidade que está para além dos percepção sensorial – um mundo eterno, espiritual; libertando a psique humana do condicionamento do tempo e espaço. Isso é importante, pois, essa função também se reflete como uma abertura ao inconsciente, a criatividade e imaginação. Que são elementos importantes para o equilíbrio dinâmico da psique.
A segunda, a função cosmológica da religião oferece ao homem uma perspectiva sobre o universo e situa o no mesmo. Essa função geralmente foi mal compreendida afirmando que as mitologias e religiões eram uma proto-ciência, uma tentativa de explicar o mundo. As narrativas sobre a origem do universo, dos deuses, dos homens, de como surgiram os instrumentos, etc…não tinham o objetivo de uma explicação “científica”, mas, sim atribuir sentido e significado ao universo que circunda o homem, colocando-o nessa teia da vida. :Se na primeira função indica que há algo para além da percepção, nessa segunda função o homem toma parte desse mundo sobrenatural, percebendo qual é o seu lugar na existência.
A função social da religião se relaciona com o grupo social. Toda religião vai indicar certas regras de convívio social, geralmente, justificando e reforçando os conceitos morais e organizacionais de um grupo, visando a sobrevivência do mesmo, a religião se constitui um elemento de identidade, dando coesão ao grupo
A quarta, é função pedagógica. A religião se apresenta como pedagógica na medida que orienta as ações e comportamentos dos indivíduos em cada etapa da vida. As narrativas religiosas oferecem ao individuo referencias para se organizar frente ao mundo e as dificuldades, para fazer suas escolhas e tomar suas decisões. Em cada etapa da vida, o individuo é cercado por referências (narrativas/mitos) que o prepara para a vida e para morte. As quatro funções são interligadas, pois, uma leva a outra, oferecendo um solo relativamente firme sobre o qual o individuo pode se organizar e viver.Essas quatro funções nos auxiliam a perceber como a religião pode atuar psique.
A religião é uma importante fonte de símbolos que possibilita que o homem tenha um contato diferenciado com sua realidade interior. Os símbolos religiosos foram elaborados/refinados pela consciência coletiva/cultura, de modo a possibilitar que a consciência tenha contato com a esfera dos arquétipos sem que isso ofereça risco à integridade da consciência. Através dos símbolos, a energia psíquica inconsciente contribuem para a estruturação do Ego, dando energia e condições para enfrentar as dificuldades do dia a dia.
Por meio do símbolo, o mundo dos arquétipos penetra, através do homem criador, na esfera da cultura e da consciência. O mundo das profundezas fecunda, transforma e amplia, dando à vida do coletivo e do individuo o fundo único que torna a existência plena de sentido. O significado da religião e da arte é positivo e sintético, não penas para as culturas primitivas, também para nossa cultura e para nossa consciência superacentuadas, justamente porque elas oferecem um canal de saída para conteúdos e componentes emocionais cuja supressão foi demasiado rigorosa. Tanto em relação ao detalhe, como também em relação ao todo, o mundo patriarcal da cultura, com a sua primazia da consciência, forma apenas um segmento. As forças positivas do inconsciente coletivo que foram excluídas lutam, no homem criador, por se manifestarem e, através dele fluem para a comunidade. São em parte forças “antigas”, excluídas pela ultradiferenciação do mundo cultural e, em parte, forças novas, nunca presentes antes, destinadas a dar forma à face do futuro.(NEUMANN, 1995,p.269)
Apesar da concepção junguiana compreender que função psíquica da religião é naturalmente positiva, não se nega ou se ignora o fato de que a religião possa ser utilizada por grupos ou lideres religiosos de forma “inadequada”, em alguns casos corroborando com o pensamento de Marx, de que a religião seria o opio do povo. Ou mesmo, o individuo pode ser esmagado pelos dogmas da instituição religiosa (não tendo a vivência saudável da religião), se vendo mergulhado num oceano de culpa, assim, vivendo a religião como uma busca incansável por expiação, se constituído como uma neurose obsessiva, como Freud sugeria.
Por esse motivo eu apontei acima, que para pensar a função da religião devemos conhecer o primeiro contexto para visualizarmos sua função. A religião não é positiva ou negativa, ela pode funcionar ou atuar de modo positivo ou negativo, dependendo de como for vivida ou manipulada. A religião pode ser veiculo de saúde (como vemos pessoas que realmente superam doenças, drogas, luto etc,), mas, por outro lado, também pode veiculo de manutenção dos mais diversos preconceitos e estimulando muitas vezes o ódio e a violência. Como disse, tudo depende o uso que é feito da religião.
Nós falamos da religião num prisma coletivo,no campo individual, devemos ter atenção para observar como o individuo se relaciona com a religião. Apesar dessas funções citadas acima atuarem sobre o individuo, o individuo pode se valer da religião de forma patológica – perpetuando culpas ou preconceitos. Acredito que o psicólogo deva condenar e combater abertamente todo e qualquer preconceito ou injustiças cometidas contra qualquer ser humano promovidos por religiões, grupos, seitas ou instituições. Entretanto, quando se trata do individuo, devemos ter cuidado para não atacarmos o individuo perdendo de vista a os fatores que o levaram a essa atitude patológica ( seja o preconceito ou o fanatismo), como diz o ditado “não devemos jogar o bebê fora junto com água do banho”. Se a religião for um fator constitucional fundamental para aquele individuo, devemos leva-lo a questionar aquela atitude ou sua crença patológica, não julgando todo o sistema religioso, para não promover uma “amputação psíquica”. Mas, isso necessitaria que o psicólogo possuísse um certo conhecimento do sistema religioso do cliente. Jung tinha uma opinião interessante(e controversa) a esse respeito, segundo o mesmo,
Minha posição neste assunto é a seguinte: Enquanto um paciente é deveras membro de uma Igreja, deve levar isto a sério. Deveria ser real e sinceramente um membro daquela Igreja e não ir ao médico para resolver seus conflitos quando acredita poder fazer isso com Deus. Quando, por exemplo, um membro do Grupo Oxford me procura para tratamento, eu lhe digo: “Você pertence ao Grupo Oxford; enquanto for membro dele, resolva seus assuntos com o Grupo. Não posso fazer nada melhor do que Jesus”.
Gostaria de contar-lhes um caso desses. Um alcoólico histérico fora curado pelo movimento desse Grupo, e este o usou como uma espécie de caso-modelo. Mandaram-no viajar por toda a Europa, onde dava seu testemunho e dizia ter procedido mal, mas ter sido curado por esse movimento. Depois de haver contado vinte ou cinqüenta vezes sua história, ficou cheio e recomeçou a beber. A sensação espiritual simplesmente desapareceu. O que fazer com ele? Agora dizem que se trata de um caso patológico e que ele precisa de um médico. No primeiro estágio foi curado por Jesus, no segundo, só por um médico! Tive que recusar o tratamento desse caso. Mandei-o de volta a essas pessoas e lhes disse: “Se vocês acreditam que Jesus curou este homem da primeira vez, ele o fará pela segunda vez. E se ele não o puder, vocês não estão supondo que eu possa fazê-lo melhor do que Jesus, não é?” Mas é exatamente o que pensam: quando uma pessoa é patológica, então Jesus não ajuda, só o médico pode ajudar.
Enquanto alguém acredita no movimento do Grupo Oxford, deve permanecer ali; e enquanto uma pessoa é da Igreja Católica, deve estar na Igreja Católica para o melhor e para o pior, e deveria ser curada através dos meios dela. E saibam os senhores que eu vi que as pessoas podem ser curadas por esses meios – é um fato. A absolvição e a sagrada comunhão podem curá-los, mesmo em casos bem sérios. Se a experiência da sagrada comunhão for real, se o rito e o dogma expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele pode ser curado. Mas se o rito e o dogma não expressarem plenamente a situação psicológica do indivíduo, ele não pode ser curado. (Jung, 1997, p.271-2)
Jung defendia que a religião não só era uma expressão da psique, como parte do mecanismo de autoregulação psíquica. No caso citado acima, a recusa de Jung foi justamente para evitar uma “amputação” da crença daquela pessoa. A recaída ocorreu em função da política que foi feita utilizando a experiência daquele individuo. Podemos acreditar que o atendimento foi negado pelo fato da busca por atendimento ter partido do grupo, o que poderia ferir e enfraquecer a experiência simbólica daquele individuo, que poderia ser terapêutica para ele.
Isso não quer dizer não devamos atender um paciente religioso, mas, que devemos estudar e conhecer as várias dinâmicas religiosas, Jung considerava fundamental o estudo de mitologia e religião comparadas no preparo de novos analistas. O estudo das idéias religiosas é importante para compreender o cliente em seu próprio contexto simbólico, de modo a compreender o individuo em sua totalidade, respeitando suas crenças e, quando necessário, fazer apontamentos para promover uma reflexão acerca de suas crenças, sem que isso signifique uma violência contra o individuo e suas crenças. Nesse contexto, o ideal seria que quando o paciente estivesse com uma crise de cunho religioso/espiritual (com dúvidas próprias a sua relação com o divino) que o profissional conhecesse dos sistemas religiosos e denominações possuísse contato com bons ministros religiosos (como bons padres ou pastores) que pudessem tirar as dúvidas campo espiritual. Afinal, não é função do psicólogo dizer o que é ou que não é pecado; ou tirar dúvidas acerca de questões “fé”. Muitas vezes, nós psicólogos, questionamos os ministros religiosos por tratar tudo como “espiritual”, mas, muitas vezes, não percebemos que fazemos o reducionismo oposto, tratando tudo como psicológico.
Por outro lado, para tanto, o psicoterapeuta deve ter clareza de suas próprias crenças para não se deixar levar por elas, pois, todo e qualquer proselitismo ou tentativa de conversão/evangelismo/catequese durante o processo terapêutico é SEMPRE prejudicial ao mesmo. Isso não só fere o código de ética profissional do psicólogo, como é uma clara violência contra o individuo. E não se trataria de uma conversão autêntica, mas, de um convencimento, uma sedução baixa feita por meio do abuso da relação terapêutica.
Concluindo, a religião tem como função psicológica básica, fornecer símbolos (imagens, narrativas e ritos) que intermediem a relação da consciência com o inconsciente, oferecendo um sistema de referência que promove a segurança e estabilidade do Ego. Essa função já oferece um aspecto terapêutico natural à religião, que pode servir como coadjuvante no processo terapêutico, desde que o terapeuta seja responsável e ético, para respeitar a matriz religiosa de seu cliente.
Referências bibliográficas
GIBRAN, G.K. O Profeta, ACIGI:Rio de Janeiro, 1976
CAMPBELL, Isto é Tu, Landy: São Paulo,SP, 2004
NEUMANN, E. História da Origem da Consciência, SP, Cultrix, 1995
JUNG, C.G. A Vida Simbólica – Vol I, 2 ed Petrópolis, RJ: Vozes, 2000
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes