O Abandono é um tema arquetípico por excelência. Tanto seu aspecto ativo (abandonar, desapegar) quanto o passivo (ser abandonado) estão presentes em diferentes situações na dinâmica dos heróis, da criança divina, nas migrações, e em todos esses processos podemos vislumbrar a ubiquidade do abandono. Assim, todos nós, em algum momento, nos sentimos abandonados, sendo algo necessário para a diferenciação da consciência, amadurecimento do ego e da relação com o self. Nosso objetivo, porém, não é pensar o sentimento de abandono pelo viés arquetípico ou pelo viés da individuação, mas pelo viés pessoal, onde as relações, complexos e defesas se organizam ao longo do desenvolvimento gerando sofrimento.
O abandono ou sentimento de abandono é uma realidade psíquica que deve ser sempre considerada. Muitas vezes somos tentados a fazermos a distinção entre o abandono real ou imaginário, mas na verdade, o que importa é o sentimento ou sensação de abandono, o registro interno, pois ele indica uma experiência vivida interna ou externamente.
De forma geral, observamos o abandono em seu aspecto objetivo, como abandono físico/material. Mas a maior parte dos abandonos se dá de forma subjetiva, vividos desde a infância como abandono “afetivo”, que pode compreendido em menos três aspectos:
1o – Envolve mais propriamente o campo afetivo que se dá na deficiência do envolvimento ou investimento afetivo especialmente na relação com as figuras parentais. Esse investimento afetivo seria natural numa relação eu-você (sujeito com outro sujeito), mas nessas situações vividas como eu-isso (sujeito com objeto), nessa relação nos sentimos como “coisa” e não como pessoa. Deixando um profundo sentimento de rejeição e baixa autoestima.
2o – É o cuidado insuficiente ou mesmo protocolar atendendo às necessidades vitais ou obrigações, mas sem criar uma relação e ambiente suficiente seguro para o desenvolvimento, gerando um movimento defensivo da persona (falso self), que força uma adaptação e um “amadurecimento” para qual a criança não estava pronta – o que tira precocemente a criança da infância. Tal situação pode deixar uma sensação de desamparo, mesmo diante da percepção que “nada faltou”.
3o – É a desproteção, que traz a sensação constante de insegurança e desamparo. Muito relacionada às comunicações ambivalentes ou de duplo vínculo, ou seja, conflitante que afirma e nega, valoriza e desmerece; ou às constantes punições e ameaças, deixando a criança numa constante sensação de ansiedade e medo.
Em todas essas situações o registro interno é de “abandono” (às vezes traduzido como desamparo, insegurança). Naturalmente, nossa psique tenta lidar ou elaborar essa vivência sofrida, se defendendo e tentando “compensá-la” ou “evitá-la”. Essas tentativas da psique se refletem tanto nos padrões de apego (inseguro, ansioso, evitativo ou ambivalente), gerando sentimentos contraditórios de si-mesmo, dificuldade de expressão do afeto, dificuldade relacionar-se consigo mesmo e com o outro.
Quando o sentimento de abandono é o pano de fundo da experiência do indivíduo, ele se defende na mesma medida em que deseja o relacionamento. Pode afastar-se das pessoas amadas, rejeita-las para não ser rejeitado (com um peso e sofrimento mortal), se julgando indigno de afeto, revivendo a rejeição e o abandono, mantendo-se abandonado em solidão.
Outra possibilidade é lançar-se precipitadamente em relacionamentos, abandonando-se no outro, sem reconhecer a si mesmo, nem seus desejos ou necessidades, vivendo à mercê do desejo do Outro. A busca incessante por aceitação ou mesmo por ideal de “perfeição” é uma máscara para o sentimento profundo de rejeição. A música de Jacques Brel “Ne me quitte pas” (1959), expressa bem essa vivência negação de si mesmo, quando diz
“Deixa que me torne
a sombra da tua sombra,
A sombra da tua mão,
A sombra do teu cão
Não me deixe”
A psicodinâmica do sentimento de abandono envolve complexos parentais e de poder que envolvem o sentimento de impotência e fracasso; o ego fragilizado, identificado com os objetos negativos – que trazem culpa, uma autopercepção e autoestima, distorcidas e defesas que fecham o indivíduo em seu mundo solitário, evitando uma devastação posterior.
Na análise/psicoterapia, identificar o sentimento (que se manifesta muitas vezes na transferência e na resistência) é o primeiro passo que nos ajuda a investigar a história do paciente, as implicações afetivas e defensivas associadas a seus complexos, permitindo assim a compreensão do sofrimento presente, das relações atuais e avaliar quais as reparações no presente e as possibilidades de desenvolvimento no futuro.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 99316-6985.
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