(3 de janeiro e 2012)
Em 2012, um dos livros mais importantes para a história da psicologia analítica completará 100 anos, o “Símbolos da Transformação” .
Originalmente, seu título era “Metamorfoses e Símbolos da Libido” que teve a sua primeira parte publicada em 1911, a segunda parte foi publicada em 1912, pouco tempo após a publicação, foi lançado a edição integral do livro. Esta segunda parte merece destaque pois, ela tornou pública a divergência teórica que existia entre Jung e Freud. Dado a importância que Jung via nesta obra, em 1950 ele promoveu uma ampla revisão e ampliação do livro, atualizando a linguagem, conceituação, mas, sem perder a essência do texto, que veio a se chamar “Símbolos da Transformação” como conhecemos hoje.
Neste primeiro post, pretendo discutir um pouco alguns aspectos históricos que considero importantes para compreender o lugar que livro ocupa na obra junguiana.
C.G.Jung e o “Símbolos da Transformação”
Em suas memórias Jung nos conta a semente que originou esse livro foi lhe dada num sonho,
Eis os sonho: eu estava numa casa desconhecida, de dois andares. Era a “minha” casa. Estava no segundo andar onde havia uma espécie de sala de estar, com belos móveis de estilo rococó. As paredes eram ornadas de quadros valiosos. Surpreso de que essa casa fosse minha, pensava: “Nada mau!” De repente, lembrei-me de que ainda não sabia qual era o aspecto do andar inferior. Desci a escada e cheguei ao andar térreo. Ali, tudo era mais antigo. Essa parte da cada datava do século XV ou XVI. A instalação era medieval e o ladrilho vermelho. Tudo estava mergulhado na penumbra. Eu passeava pelos quartos, dizendo: “Quero explorar a casa inteira!” Cheguei diante de uma porta pesada e a abri. Deparei com uma escada de pedra que conduzia à adega. Descendo-a, cheguei a uma sala muito antiga, cujo teto era em abóboda. Examinando as paredes descobri que entre as pedras comuns de que eram feitas, havida camadas de tijolos e pedaços de tijolo na argamassa. Reconheci que essas paredes datavam da época romana. Meu interesse chegara ao máximo. Examinei também o piso recoberto de lajes. Numa delas, descobri uma argola. Puxei-a. A laje deslocou-se e sob ela vi outra escada de degraus estreitos de pedra, que desci, chegando enfim a uma gruta baixa e rochosa. Na poeira espessa que recobria o solo havia ossadas, restos de vasos,e vestígios de uma civilização primitiva. Descobri dois crânios humanos, provavelmente muitos velhos, já meio desintegrados. – Depois, acordei. (JUNG, 1975, 143)
Esse sonho ocorreu durante a viagem que ele realizou com Freud aos Estados Unidos em 1909. Nesta viagem, Jung relata que haviam ocorridos alguns desentendimentos com Freud, que abalaram a amizade que tinham. Jung conta que Freud não foi capaz de apreender o conteúdo deste sonhos, fixando-se na imagem das caveiras, que julgou ser um desejo de morte por parte de Jung. Ficou claro para Jung que a diferença que havia entre ambos, impedia a Freud de compreender o conteúdo de seu sonho. Entretanto, para Jung a semente do sonho começou a germinar.
O sonho da casa teve um curioso efeito sobre mim: despertou meu antigo interesse pela arqueologia. Voltando a Zurique, li um livro sobre as escavações na Babilônia e diversas obras os mitos. O acaso me conduziu ao Simbolismo e Mitologia dos Povos Antigos, de Friedrich Creuzer, e esse livro me causou entusiasmo.(ibid, p. 145)
Estimulado por esse sonho, Jung enveredou pelo estudo da mitologia, aprofundando conhecimentos de história, símbolos, mitos de diversos povos.
Quando estava imerso nesses trabalhos, encontrei os materiais fantasmagóricos nascidos da imaginação de uma jovem americana que eu não conhecia, Miss Miller. Haviam sido publicados por Teodoro Flournoy, amigo paternal, que gozava de toda minha estima, nos Archives de Psychologie(Genebra). Fiquei imediatamente impressionado pelo caráter mitológico dessas fantasias. Agiram como um catalisador sobre as idéias ainda desordenadas que eu acumulava. A partir dessas fantasias, e também dos conhecimentos que adquirira sobre mitologia, nasceu meu livro Metamorfoses e símbolos da Libido. (ibid, p. 146).
É interessante observarmos que em 1911, as relações entre Freud e Jung já estavam conturbadas desde a viagem aos EUA em 1909, entretanto, outros eventos contribuíram com a “degradação” da amizade. Devemos lembrar que em 1910 na por ocasião do congresso em Nuremberg foi fundada a International Psychoanalytical Association, e teve como primeiro presidente eleito Jung. Deirdre Bair, uma importante biógrafa de Jung, nos dá uma noção interessante do cenário de 1911.
Visto em perspectiva, é irônico que o mais parcial dos biógrafos de Freud, Ernest Jones, tenha sido aquele que mais objetivamente descreveu o obscurecimento da situação de Jung e Freud quando terminava o ano de 1911 e começava o ultimo ano da colaboração entre os dois. De acordo com Jones, o motivo da ruptura e o que mais perturbou Freud não foi aquele acusado por tantos comentaristas – a crescente diferença entre a interpretação que os dois estudiosos faziam do conceito de libido. Ao contrário, foi a “intensa absorção de Jung por suas pesquisas [que] estava interferindo nos deveres presidenciais que [Freud] tinha atribuído a ele”. Na cabeça de Freud, o principal papel de Jung era o de seu “sucessor direto, […] funcionando como foco central para todas atividades psicanalíticas.” (BAIR, 2006, p.272-3)
Bair destaca que as atividades psicanalíticas envolviam sobretudo a administração das atividades da associação, trabalho editorial, supervisão de colegas e fazer a ligação das entidades psicanalíticas. Assim, para Freud a função de Jung era desenvolver o movimento psicanalítico e não a teoria psicanalítica.
Jones parecia achar que Jung era culpado de um pecado ainda mais importante, o de não estar a altura dos “desejos mais pessoais de Freud” por que ele era “sempre um correspondente um tanto imprevisível; sua dedicação às pesquisas tornava-o cada vez mais negligente a esse respeito”. A dedicação e a pesquisa independente também faziam com que Jung representasse uma ameaça cada vez mais formidável para Freud. Entretanto, Jones cuidadosamente evitou esse tipo de observação, ou não era perspicaz o suficiente para percebê-la. (ibid, p. 273)
É possível que Jung não tenha percebido o quanto estava absorvido por sua pesquisa, considerando, que seu desempenho na presidência da IPA aceitável. Contudo, a produção deste trabalho não foi tranquila, especialmente na segunda parte onde Jung anunciava para a sociedade psicanalítica suas diferenças com Freud. Em suas memórias, Jung afirma
“Quando estava quase acabando de escrever Metamorfoses e Símbolos da Libido, eu sabia de antemão que o capítulo “O sacrifício” me custaria a amizade com Freud.Nele expus minha própria concepção do incesto da metamorfose decisiva do conceito de libido e de outras idéias, que representavam meu afastamento de Freud.” (JUNG, 1975, p. 149).
Assim, a gênese do “Símbolos da Transformação”, desde seu primeiro sonho, conduziu Jung ao campo de estudo que lhe era próprio, mas, estava adormecido. A dedicação as pesquisas absorveram Jung irritando profundamente a Freud, a ponto de tornar a relação insustentável, assim como a cooperação teórica.
Símbolos da Transformação, Críticas e Legado
Jung sabia que seu trabalho o afastaria de Freud, contudo, esse não foi o único efeito “colateral” de seu livro. Em suas Memórias, ele afirma,
Depois da ruptura com ele, todos meus amigos e conhecidos se afastaram de mim. Meu livro não foi considerado uma obra séria. Passei por um místico e desse modo encerram o assunto. Riklin e Maeder foram os únicos que ficaram do meu lado. Mas eu tinha previsto a solidão e não me iludi acerca das reações dos pretensos amigos. Muito pelo contrário, refleti profundamente sobre o assunto. Sabia que o essencial estava em jogo e que deveria tomar a peito minhas convicções. Vi que o capitulo “O Sacrifício” representava o meu sacrifício. Isso posto, pude recomeçar a escrever, se bem que de antemão que ninguém compreenderia minhas idéias. (JUNG, 1975, p. 149).
Nesse mesmo ano de 1912, Freud criou o chamado “Comitê’” que seria um grupo secreto de psicanalistas proeminentes e sobretudo fiéis ao mesmo . Esse “grupo secreto” zelaria pela psicanálise combatendo duramente qualquer idéia que desviasse da concepção ortodoxa, de modo a evitar que Freud se desgastasse em discussões políticas, formando uma espécie de “guarda pretoriana” de Freud, os primeiros membros deste comitê foram: Ferenczi, Abraham, Jones, Rank, Sachs.
Assim, coube Ferenczi a refutação publica das idéias de Jung, o que ele realizou num ensaio em 1913, ao passo que nos bastidores o destino de Jung, já estava selado: seria o mesmo de Adler e Stekel – expulsão do movimento psicanalítico. A crítica que Ferenczi seguiu exatamente as diretrizes por ele apresentadas:
Criticaremos esse livro exclusivamente de um ponto de vista psicanalítico, detendo-nos sobretudo naquelas teses que pretendem opor às nossas concepções psicanalíticas atuais novas e melhores maneiras de ver. O futuro decidirá se não estaremos exagerando no nosso esforço de não sacrificar o antigo ao novo – simplesmente porque é novo se não sucumbiremos assim a esse mesmo conservadorismo rígido que temos recriminado até agora em nossos principais adversários. (FERENCZI, 1992, p.87) (grifo nosso)
A proposta de Ferenczi foi muito clara, seu intuito seria fazer uma avaliação do que era psicanálise e o que não era, separando o “joio do trigo”. O trabalho de Jung não foi considerado “em si” ou em seu próprio contexto, ou como uma ampliação do campo de estudo, mas, como a obra de um inimigo ou opositor. A crítica de Ferenczi, seu afastamento de Freud, o trabalho do comitê secreto que o combatia nas diferentes sociedades que compunham a IPA, fez com que Jung fosse desacreditado e seu livro, como ele afirmou, “não foi considerado uma obra séria”.
Os acontecimentos que seguiram a publicação do “Metamorfoses” foram determinantes para a gênese da psicologia analítica, assim como para a transformação pessoal de Jung, conforme temos acesso hoje, através do Livro Vermelho. A importância dessa obra, foi indicada por Jung em 1950,
Assim, este livro se tornou um marco, colocado no lugar onde dois caminhos se separam. Por sua imperfeição e suas falhas ele se transformou no programa dos próximos decênios minha vida”[…]
Este livro foi escrito em 1911, quando eu contava trinta e seis anos de idade. Esta é uma época crítica, pois representa o inicio da segunda metade da vida de um homem, quando não raro ocorre uma metanóia, uma retomada de posição na vida. Eu bem sabia na ocasião, do inevitável rompimento com FREUD tanto no trabalho quanto na amizade. (JUNG, 1999, XIV-XVII)
O “Símbolos da Transformação” marca o inicio de um novo caminho, o inicio da psicologia analítica. Sua importância vai além de um aspecto histórico, pois, na década de 1950, a mudança de nome significou seu renascimento. Este livro guarda em si tanto a semente lançada em 1912 como os frutos colhidos na década 1950, o que o torna uma obra impar na literatura junguiana.
No decorrer deste ano iremos fazer outros posts discutindo um pouco mais dessa importante obra centenária.
Referências Bibliográficas
JUNG, Carl Gustav, Memórias Sonhos e Reflexões, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
JUNG, C.G. Simbolos da Transformação, Petrópolis: Vozes, 4ed., 1999.
BAIR, D. Jung – uma biografia vol.1 , Ed. Globo 2006.
FERENCZI, S. Psicanálise II , São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes